MINA DE SÃO DOMINGOS EM 1968 E 1969

Ano: 
1968
Descrição: 

São Domingos, quando nova
Nunca te chamaram feia.
Do concelho és a maior
Sem ser vila nem aldeia

Sem ser vila nem aldeia
Do passado és ilusão,
Estás velha, foste nova.
Hoje estás na solidão
(De uma moda do grupo coral de Mértola)

A mina de São Domingos e lenda negra no Baixo Alentejo. Tão negra quanto o boqueirão da entrada que os gasómetros já não alumiam, Fala-se dela em Mértola como de um sonho desfeito, sonho que foi pesadelo nos tempos duros de trabalho mas deu vida a milhares de braços e pão a milhares de bocas. Dos 1800 mineiros que alimentavam com o seu trabalho, uma aldeia de 8000 Pessoas, só restam sete para arrancar das galerias soturnas em silencio, dolentemente, peças ferrugentas de máquinas partidas.
Ruas longas, paradas como a frustração dos reformados.

Casas desfeitas, que ninguém habita; portas, a bater ao desamparo, porque não há gente para entrar. Braços cruzados, em grupos, à porta das tabernas: desalento, vozes baixas que mal se ouvem. casas paradas de esperança morta, como um asilo de velhos ou clínica de paralisia cerebral. E há sombras, sombras frescas de ramos novos, que a Primavera trouxe às ideias nas latadas, ao pinho manso, ao choupo, às oliveiras. Primavera irrisória que não aquece as almas nem revigora o sangue para os trabalhos do Verão. — Isto parou há dois anos —dizia um antigo mineiro. —Primeiro, levaram cinco meses sem pagar. Cem, escudos num mês, cinquenta noutro e a pro-

— Há três anos, ainda havia 1200 mineiros sindicalizados, chegámos a ter 1600. Agora é esta miséria que o senhor vê. Pararam tudo, porque o minério já não dava rendimento, — Isso era o que eles diziam, sr. Zé — refilava um homem de 60 anos, — Então por que inundaram a mina? Ainda havia lá minério para quarenta anos de trabalho. Até faz dó: ligarem a água para as galerias, a estragar tudo! maldade! E quando eles partiram as máquinas? Cada martelada nas máquinas era uma dor que eu sentia cá dentro. Se todos fossem da minha opinião... ninguém fazia mal às máquinas.. Nem com um dedo!... Ai, se eu pudesse!.., Mas o velho mineiro acalmou--se («Tinha de ser, é o destino que não quer nada com a gente.»). E acabou por concordar com alguém que segredara baixinho: «Aquilo foi falta de cabeça».
- Os ingleses, enquanto cá estiveram, eram isto e mais aquilo, mas nunca fizeram uma coisa destas. Loucura. Loucura é que foi... A nosso lado, o sr. Manuel Zarcos, sessenta e dois anos cansados, continua sem falar. Desafiaram-no.

— Há 49 anos que trabalho na Cooperativa. Chegámos a ter mais de 2000 sócios e cinco mil contos de movimento por ano, com lucros de mais de 5 por cento. Agora.., ainda estão inscritos mil sócios. mas a maior parte já se foi embora. O ano passado apenas movimentámos 900 contos e tivemos um prejuízo de 130 contos. Agora só temos tido prejuízos, Se não fosse o fundo de reserva, estávamos bonitos... Já houve ali um comércio activo. Mas agora a loja grande está vazia. Prateleiras desamparadas. O dono, à porta, sem fregueses. Não há dinheiro, senão no dia em que pagam as pensões da Previdência. ou quando algum soldado manda de África alguns escudos à mãe.

Também houve cafés e restaurantes, casas de pasto e de dormidas. Um povo laborioso descansava à noite e nos domingos e tinha as suas horas de convívio e de alegria. A banda tocava no largo, em frente da igreja e chegou a ter 35 instrumentos. A equipa de futebol que disputava o Campeonato Nacional da II Divisão era das melhores do distrito, Nos arraiais de Serpa, e Almodôvar, nos bailes e festas de Mértola arredores e até nas feiras de Beja nunca faltava o dinheiro das minas nem o despique dos cantares. E tudo o vento levou... Figura típica de São Domingos é o sr. Francisco Guerreiro, de longas barbas de protesto, irónico e palrador. É o barbeiro da terra. Em tempos explorava duas lojas bem afreguesadas, onde agora as moscas brincam a seu bel- prazer. Descansa pacatamente dos anos seguidos em que não viu férias e cortava barbas pelo serão adentro e não tinha mãos a medir. Engordou. Mas antes queria não ter tempo para comer, como há três anos, quando tinha 124 fregueses de assinatura que pagavam dez escudos por mês para fazerem a barba as vezes que entendessem. Agora tem apenas 6 assinaturas.
— A maior parte dos dias estou para aqui de braços cruzados, sem fazer nada, desde que os mineiros se foram embora. De vingança, não corto a barba: já não ganho que dê para isso. Ainda pago 513$00 de impostos. Antigamente, quando tinha sempre a casa cheia, pagava cento e vinte e dois. É bonito, não acha? Ninguém respondeu, senão o periquito na gaiola, por cima da porta da barbearia. Mas era uma risota chasqueada, irritante e imbecil. Não lhe ligaram importância. E foi bem feito! E depois de um silêncio em que todos abanaram a cabeça, o sr. Guerreiro falou mais: ,
—Foram-se todos embora Lisboa Algarve, França... (Fugidos). Também... o que estavam aqui a fazer? Todos se queixavam de que as casas não prestavam: havia família com dez filhos a viver num quarto. Agora há largueza: há para ai menino que tem uma casa para cada dia da semana. A maior parte estão desertas, mas as portas já não fecham. Por 25$00 de renda tem-se uma casa, que é um Primor...

ESTÁS VELHA
FOSTE NOVA
HOJE ESTÁS
NA SOLIDÃO

E aqui terminava a nossa reportagem. Quisemos trazer recordações. Talvez um gasómetro de latão, dos antigos que os mineiros levavam para a mina. Impossível. Encontrámos muitos de vários tamanhos e feitios, mas ninguém teve coragem de os vender. São recordações do trabalho, dos bons tempos de outrora, e alguns ainda se utilizam de noite nas casas, porque em São Domingos não há luz eléctrica. De regresso a Mértola, ainda pudemos recolher mais pormenores. No Município, ouvimos falar o presidente da Câmara acerca dos projectos de electrificação para São Domingos. Também soubemos de soluções que foram tentadas para empregar alguns mineiros. Tudo faliu: a fábrica de mármores, a fábrica de plásticos. Ultimamente,houve a ideia de unta fábrica de roupas-feitas. Impossível: a estatística provou que apenas 1% da actual população masculina tinha idade compreendida entre os 18 e os 45 anos.