MINEIROS DA CHARNECA-REPORTAGEM DIÁRIO DE LISBOA 1952

Ano: 
1952
Descrição: 

Não chegou para adormecer na sedução popular as lendas dos tesouros escondidos

Lisboa, Beja, serpa, Baleizão, Mina de S. Domingos...

A 250 quilómetros da capital está este lugarejo que vai tomando o feitio e o movimento de uma vila. Tem mais vida, mais pujança do que muitas outras que ficam para um lado e o outro dos seus limites. E isso explica-se pelo fenómeno industrial da região. Enquanto a Mina mantiver os seus propósitos de prosperidade, cerca destas oito ou dez mil pessoas localizadas á sua volta manterão o seu nível de vida alguma coisa acima da que fazem os trabalhadores rurais alentejanos. Daí, a sugestão tão hipnótica que ela exerce sobre o povo. Apesar de tudo, a Mina é sempre melhor do que muita coisa boa levada ás mãos da pobreza alentejana. A Mina dá condições de vida, sob muitos aspectos superiores ás que lhes oferece o Estado na dura faina de calceteiro ou o patrão, na missão intermitente de dominar a pobreza da sua terra arável.

Nesta ronda alentejana entre searas verdejantes que despontam cinquenta centímetros acima da terra vermelha, a Mina, centro mineiro e fabril ao mesmo tempo, é um milagre inesperado da natureza.

Há cem anos que regularmente se desentranha em pirites de maravilhosos fins industriais. Há cem anos que, lentamente primeiro, depois mais febrilmente e agora num ritmo mais moderado, vai construindo um progresso que pode ser efémero
mas que não deixará jamais de constituir justo motivo de desvanecimento, para quem o fomenta e o vai alimentando.

As «minas» de ouro...

Cerca de um século atrás, no cabeço de um «monte» havia uma capelinha com seu santo milagreiro. São Domingos se chamava, com bastante nomeada entre as populações das redondezas, sobretudo as de Corte do Pinto e Santana de Cambas. A capelinha lá está, transformada em sala de espera do modesto hospital e numa inscrição se lê: «esta era a única construção existente na região em 1858». Para além, naquele caminho do «monte», como coisa singular, havia uma oliveira, quem sabe quantas vezes centenária, quem sabe de que rei mouro de outrora... O povo olhava-a, passava. Até que, aqui há menos de duas dezenas de anos, apareceram dois mouros de Marrocos que da distancia física da terra e dos séculos a haviam localizado. Tinham sonhado que ali, na Mina de S. Domingos, existia uma oliveira centenária e sob as suas raízes um tesouro fabuloso dos seus avós de há séculos. Houve alvoroço na Mina. Cavou-se, cavou--se... A oliveira era aquela, lá estava. O tesouro—esse ninguém o viu, por mais fundo que fossem arrancar as raízes da velhinha muitas vezes centenária... O povo, porém, não desiste: na Mina—não há apenas pirites com algum ouro á mistura. Há também tesouros fabulosos, muito ouro enterrado... Aqui há anos, dois mineiros sonharam na mesma noite que, debaixo da farmácia, havia um grande tesouro escondido pelos mouros. E foram lá e cavaram, cavaram tanto que o dono da farmácia tremeu até aos alicerces da pequena construção e proibiu que se cavasse mais. Do acto resultou apenas a colheita de algumas ossadas, pedaços de ânfora, restos de outras tão notáveis como extintas civilizações. Foram estas que, através dos séculos, avolumararn as lendas dos tesouros escondidos. A mina de pirites, já explorada no tempo dos Romanos e até talvez no tempo dos Fenícios, ajudaria a fortalecer e a deturpar a fama das riquezas do lugar... Assim nasce uma povoação nos «montes» ao redor da capela de São Domingos, batidos pela fome de tantos em tantos meses, cultivava-se o trigo e pastoreava-se o gado. E quando a Sabina veio explorar a Mina, os homens não acreditaram que fosse pedra

com préstimo que os atraísse. Mais tarde, apareceram o, srs. Mason e Barry, um rico outro técnico e ambos inteligentes. Adquiriram os direitos de exploração-os belgas mantêm lá o seu «fiscal» para fazer contas, saber do minério diariamente retirado e cobrar a sua percentagem —e inauguraram um novo ciclo de trabalho. No «Palácio»—sede da Mina, encantadora construção de um só piso, com seu pátio árabe, a que não falta a sugestão das palmeiras, em plena charneca—lá estão ambos os súbditos retratados por artistas célebres do seu tempo. E nas suas peanhas elegantes, no salão que hoje além de outro préstimos tem o de servir para bailes e «cocktails» o rei da Mina», sr. Mason, ombreia em escultura, com os três penúltimos reis de Portugal, D. Pedro, D. Luís e D. Carlos. Foram os Ingleses que mais fundo cavaram os alicerces desta povoação, mesmo contra a vontade dos naturais. Durante muito tempo os homens continuaram desconfiados. O Alentejano é ainda o mouro cativo da terra e dos outros homens. Amarraram-no ao seu destino que é a terra, prendendo-o amargamente á sua dura condição. São dois salvados das grandes convulsões da História Universal, dois condenados á mesma eterna pobreza, dura e esquecida. Por isso ele é desconfiado, atento e receoso, como quantos a vida inteira são e foram burlados. Primeiro evitará a pergunta, depois dirá que não, a seguir perguntará para que é, no fim dirá que sim... Com a Mina, que ele via crescer, hoje uma, amanhã outra construção, também assim aconteceu. Furtou-se-lhe, acenaram-lhe com salários tentadores e ele duvidou da fartura. A terra e a sua pobreza eram a única realidade em que podiam acreditar. Até que, vendo os Ingleses, os Franceses os Turcos e os Espanhóis, alguns deles foragidos, prosperar na terra que era a sua, pouco a pouco foram acreditando que ela não era apenas própria para criar o pão mas, também, para dar pedras que depois se convertiam noutros luxos de maior luzimento. E, pouco a pouco, foram descendo á Mina, onde durante muitos anos trabalharam a céu aberto. Chegaram a ser quatro mil aqueles que hoje são apenas mil e quatrocentos. Vinham dos montes circunvizinhos, instalavam-se precáriamente nas casas de pedra e cal ou de adobe construídas pela Mina. Faziam vida de malta e aos sábados com a bolsinha do dinheiro e da farinha para o pão da semana, lá iam á busca da família, para na segunda-feira de manhã já estarem de volta. Mas o homem não podia passar sem a mulher, A casa ali era pequena. O coração, esse era grande. O »week end» dos Ingleses não lhes quadrava ao feitio. E hoje um, outro amanhã, foram então trazendo aqueles que mais queriam e maior falta lhes faziam, primeiro as suas mulheres, depois um filho e outro e outro que instalavam o melhor que podiam nas casas construídas segundo as leis da região-que o mesmo é dizer, sem tamanho nem higiene. Lá nos »montes« era verdade, não valiam mais as casas em que moravam. A promiscuidade não era lá menor e nelas não se chocavam com menor fragor as paixões mais descompostas do homem...

Um poder temporal e paternal

E assim a Mina foi crescendo, algumas vezes sem lei de Deus nem dos homens que se »casam« muito cedo mas nem sempre para pôr o preto no branco. A sedução que a Mina exerce sobre este povo da charneca, arrancado á lavra da terra para se fazer mineiro é total, absorvente, hipnótica. Se a Mina, inquieta com os seus problemas, os coloca fora da sua empresa, pagando-lhes a passagem e instalando-os noutras minas, eles voltarão á terra que os redime, nem que vão da Beira a pé... Para o fazer, não precisarão de inventar: basta que digam a verdade. Não se dão por outros sitios, estão afeitos á Mina, em nenhum lado encontrarão o pouco que ali têm e, com este, o banho quente, diário, á saída da contra-mina... E foi por tudo isto, porque as proles são numerosas e muitos vêm atraídos de longe pela esperança de tempos mais seguros que a Mina cresceu muito em população, em bens, em saúde, em facilidades de vida e só o caso da habitação ficou num problema grave—se não em relação ao resto do País, pelo menos posto perante a própria Mina. São hoje á volta de oito ou dez mil aqueles que vivem da contra-mina, por intermédio dos 1.400 mineiros e trabalhadores, cada um com sua mulher e seis a doze filhos. O nível de vida que ali fazem é naturalmente superior ao da totalidade das populações rurais alentejanas ou mesmo da maioria dos trabalhadores e operários da região. E' sobre este grande aglomerado que a Mina exerce o seu poder paternal e temporal. Não há pequeno ramo de actividade onde ela não leve o seu abraço de gavinha e a sua seiva fortalecedora. Por esta segurança que oferece nada pede, além dos lucros que lhe dá a contramina ou a fábrica de enxofres mais além, na Achada. Foi isto, pelo menos, o que se colheu como informação e é isto o que vai concretizar-se num segundo artigo, sobre a vida e morte dos mineiros da charneca...

MINEIROS DA CHARNECA (2) Um regime de vida comunal instituído pelo tempo e pelos usos

permite uma acção de benéfico amparo aos trabalhadores da Mina de S. Domingos

Disseram-nos que o alentejano é ávido, interesseiro e insatisfeito. Não foi esse, porém, o testemunho que recolhemos na Mina de S. Domingos, tal como pode concluir-se deste diálogo com um operário da contramina que, assim, nos pareceu parcimonioso e satisfeito: — Sim, senhor. Ganhamos entre os 22 e os 35 escudos, o que, naturalmente, não é tudo para as nossas necessidades. Além disso, temos casa, pequena, pode ser, mas que nos custa entre os dez tostões e os 30 escudos mensais. Depois dos 70 anos, podemos reformar-nos com cerca de uns 250 escudos por mês. E, tal como aqueles que estão a trabalhar ou as viúvas e os orfãos, também esses reformados terão direito a receber parte da farinha, para o pão, o seu, o da mulher e o dos filhos, o que, bem vê, não são fracos benefícios entre outros recebidos...

Balanço de benefícios

Este mesmo operário assim quer concretizar a medida em que a Mina patrocina o progresso dos bens comuns, os do corpo e os da alma: —Foi ela que nos deu a nossa bonita igreja; deu-nos uns mercado que lhe custou 250 contos, com talhos e peixarias á roda, todos em azulejos e mármores, água canalizada, luz eléctrica, bancas para legumes, como nas cidades. Devemos-lhe as estradas e arruamentos asfaltados que nos servem dentro da povoação; os jardins públicos e novas avenidas arborizadas; a luz eléctrica que é de graça; um armazém de vendas, á caderneta e com facilidades de vendas a prestações, sem juros e pelo preço do custo. Ela própria, para nos ajudar, tem caderneta na nossa Cooperativa. outra das coisas boas que em parte vive da Mina, visto que ainda este ano deu aos sócios um dividendo de 4 por cento, juros de consumo. Depois, a Mina tem a seu cargo a limpeza das ruas e todos podem ver como estão sempre asseadas. E, conquanto não disponha, tal como Mértola e outras terras importantes do Pais, de uma rede

(continua na pag. 3)

(Continuação dá 1ª página)

de esgotos, o processo que o substitui dizem os senhores doutores que é o mais limpo e menos perigoso da região. Desapareceram as montureiras e as águas sujas estagnadas, porque os lixos e os despejos são levados por excelentes tractores para lugares distantes, de cujas fossas saem misturados com água para fertilizar as terras de cultura. E ponha lá, faça favor, que a Mina nos deu o cine-teatro com aparelhagem sonora, cuja exploração cedeu, gratuitamente, a uma sociedade de beneficência de que ela própria é sócia; que, nos deu as sedes do Clube Cinco de Outubro, do Clube Musical, com seu coreto feito pela mesma e uma banda, cujo chefe é subsidiado pela empresa; que nos deu a sede do Clube de Futebol Mina de S. Domingos, cujo «team«, graças aos bons auxílios da mesma, passou este ano para a III Divisão. E, sem falar no Clube Recreativo que esse é o «clube dos ricos», qualquer destes agrupamentos tem os seus divertimentos, o pingue-pongue ou o bilhar, pouco atractivos, infelizmente, para muitos que preferem entreter-se por alguma das 40 tabernas. Hoje uma, outra amanhã, cá se foram encaixando, á sombra de vários trespasses... E, para terminar: —Junte a estas facilidades o aluguer de terras á volta das represas e seus cursos de descarga, para cultivarmos as nossas hortaliças, alguma fruta, legumes..«.- A Mina aluga a cada operário, por um escudo mensal, 125 metros quadrados de terra com boa água, que nós tratamos nas horas vagas do dia de trabalho do domingo ou dos seis dias de férias pagas por ano... E a propósito do fraco lucro dos alugueres e do conceito tradicionalista da Mina que nos contam certo episódio pitoresco... Foi aqui há anos, quando veio a nova Lei de inquilinato e o novo comandante de um dos postos Militares ali estabelecidos passou em revista os contratos de arrendamento das respectivas sedes, pois também estas foram construídas para o efeito, pela Mina. Entre as rendas mais baixas, havia uma de 3 escudos mensais. Oficiou-se, então, á empresa, sugerindo-lhe a sua actualização. A empresa agradeceu e disse que ia consultar Londres. E, passado tempo, Londres respondeu que muito obrigados—mas não estavam, por então, interessados em aumentar as rendas...

Outros depoimentos

Passaremos, porém sobre este e outros pitorescos, que é preciso continuar o pequeno inquérito á Vida dos mineiros da charneca. Na sua Simplicidade de homens sem agasalho nos vastos horizontes, a vida parece-lhes naturalmente mais que razoável, em relação a muitas outras vidas, sem solução de algum dia.

Mas o testemunho dos três médicos, o da Mina, o da Caixa, pois também ali chegou a organização corporativa, embora ladeando o regime instaurado á sombra do tempo e dos costumes —ou o do cirurgião de Lisboa que ali vai, periódicamente, operar no pequeno hospital da empresa, apetrechado para actos de cirurgia. E dos três médicos que recolhemos informações que assim se sintetizam: O índice de mortalidade infantil é dos mais baixos do País e ainda o ano passado, das 200 crianças nascidas só duas não vingaram. Números que a Mina, poder paternal como os velhos municípios mas que não cobra impostos, conquistou á força de vacinas, injecções de cálcio, leite e nestogenio distribuídos a todos nos primeiros seis meses. O sezonismo que, durante quase um século, mais preocupou a Mina, dos 22 por cento de casos registados em 1877, já o ano passado havia desaparecido, graças ao saneamento do clima, á extinção de águas estagnadas, á aplicação de DDT, á criação de umas oito albufeiras, constituídas pelas chuvas torrenciais que formam, depois, lindas praias e lagoas de pesca e regatos, todas rodeadas de altos arvoredos. Graças a tudo isso e á utilização de gambuzias, levadas de Águas de Moura, para as represas da Mina... Naturalmente—assim no-lo dizem—não se atingiu, perante todos os problemas, a solução ideal. Mas nada mais se pode reclamar como a rede de esgotos, por exemplo, quando a sede do concelho, a linda vila de Mértola aguarda ainda esse melhoramento e lutará, como todo o Alentejo, contra as ruinosas sezões... Falando ainda da vida do mineiro da charneca, colhemos que, na verdade, é a tuberculose a foice que mais os ceifa. A eles e ás famílias—não porque disso a Mina seja responsável, mas

porque lhes falta defesa contra o mal que vem de fora e ali se instala também, muito embora o pó de pirite, ao contrário do pó das rochas siliciosas, não tenha crime que se lhe atribua nem corroa os pulmões dos mineiros. Talvez por, isso, em geral, o homem que vive oito horas seguidas lá no fundo da terra ultrapassa os 70. E, talvez por isso, o ano passado 150 trabalhadores foram condecorados por terem completado 50 anos de Mina. Como se explica, então, que as crianças tenham aquele ar tão franzininho? Queremos saber mas dizem-nos apenas que o mal vem de longe e vem de fora: Há o problema de habitação, por esses «montes« além; e há, naturalmente, para uma constituição mal organizada e mal mantida,o contágio e o regime de alimentação que ele, aliás, não deseja desvirtuar, A Mina quis habituá-lo á sopa com todos os elementos essenciais. Deu-lha quase de graça. Mas, corno os outros seus irmãos alentejanos, este mineiro da charneca recusou-a, continuando fiel ao pão migado na água com poejos, reservando para os dias festivos ou do «pago» o «jantar»-que é o infalível carneiro ensopado ou á moda do cozido...

E se a Mina fechasse ?

Médicos e enfermagem, remédios, assistência cirúrgica, hospitalização. e, daqui a pouco, maternidade e creche, tal é do muito o que a Mina faz pelos mineiros ou pessoas da família, sem descontos como faz a «Caixa», para a qual pagam de má vontade á volta de um escudo e cinquenta centavos por mês... Um dia, por certo a Mina, que ajuda a manter o ensino Primário, montará uma cantina que dê livros e cadernos e alguma sopa que ajude a criança a libertar-se do sortilégio da assorda. Acabará com as velhas casas, os «quartéis« primitivos, e construirá outras com maior numero de divisões, assim instaurando no Alentejo um tipo de habitação que lhe vai fora das tradições. mas fica bem á saúde do corpo e do espíritodo seu povo. —Conhecemos a extensão das nossas responsabilidades—assim no-lo dizem na Mina—e os melindres deste viver quase comunal. Já pensou no que seria desta gente se o minério, por qualquer circunstancia, deixasse de ser o seu ganha-pão? Aqui não há mais onde o ganhar e nós sabemo-lo. Por isso, para melhorar o clima de há um século para cá a Mina já conseguiu 900 hectares de matas de pinhais e sobretudo de eucaliptos que amanhã possam servir de recurso. Desejaríamos instalar, com o patrocínio do Estado, uma escola industrial onde os filhos dos mineiros obtivessem um instrumento de trabalho ,que lhes permitisse ganhar o pão em qualquer parte, e estamos interessados em estimular a instalação de pequenas industrias caseiras, mantidas com os produtos da região-0 trigo, o leite, a lã... Assim se vive na Mina, paredes meias com a Espanha, a sugerir o contrabando, para as horas de crise na contramina. Resta saber como vivem esses homens-toupeiras, nessa contramina, a 360 metros abaixo do solo...

MINEIROS DA CHARNECA (3)

A dura vida na mina

360 metros de profundidade onde alternam o frio, o calor e o ar húmido

Falar de Mina é levantar confusões. Mina de S. Domingos ou simplesmente Mina é a localidade. Mina é também toda a organização mineira, social e administrativa que ela comporta, exercendo a sua função com um poder temporal e espiritual que se estende a todas as iniciativas e actos desta comunidade. Mas o local onde se faz a exploração mineral- esse é a »contramina«. Trabalham lá apenas em três turnos sucessivos de oito horas, 700 homens dos

Assim se perjura a massa de pirite que a pólvora depois fará desmoronar

1.400 que a empresa ocupa. Dos outros, 470 trabalham nas oficinas donde saiu, de 1917 para 1918, a primeira locomotiva construída em Portugal. Era o «Mosquito», copiadinha da »Mosca», recém-chegada de Inglaterra e ainda hoje lá há homens orgulhosos de a terem ajudado a ver o dia.

Os restantes 230 homens da Mina, uns empregam-se- no porto de Pomarão, muitos nas «Covas» e outros na Achada, na fábrica de enxofre, retirado da pirite da Mina e reservado, apenas, para a Cuf, que com ele abastecerá a lavoura portuguesa. Esta fábrica é constituída por duas construções distintas, uma de 1937, outra de 1945. A extracção faz-se por «walter-jact», em câmaras de reações químicas para as quais contribuem outros minérios colhidos na região. Mas a preparação deste enxofre não tem o quadro movimentado dos grandes acontecimentos industriais. Tudo se passa nas caldeiras e tubos descomunais, fora da vista de todos, e só aquele ressoar do enxofre, formando estalactites de florinhas amarelas, sugere a maravilha do fenómeno que

(Continua na 14ª pagina)

lá dentro se opera. Pela noite escura, os turnos sempre em função, fazem as sangrias do mate, a parte nobre da fusão. Então, tudo se tinge de tons violentos de arrebol a recortar, no escuro, as silhuetas dos sangredores, feiticeiros de misteriosas alquimias, por-que o processo de fazer enxofre é um segredo terrível que a Mina guarda ciosa, por causa das concorrências. O cobre, o zinco, o chumbo e o ouro casam-se e dissociam-se na ignorância dos leigos. E' preciso defender o segredo desta fábrica da Achada—a segunda da Península e uma das cinco ou seis que há no Mundo. No fabrico deste enxofre gastar-se-ão á volta de 80 mil toneladas de pirites. Circulará pelo porto de Pomarão plantado so-bre a margem do Guadiana, ou pela estrada que entre Serpa, e Mina há dois anos aguarda que o Estado a conclua...

A vida a 360 metros de profundidade

A parte aliciante da reportagem não está, porém, aqui mas lá em baixo, na «contrarnina«. Os homens de «côco" de papelão prensado e impermeabilizado com resina estão prontos para partir. Vão trabalhar a 360 metros abaixo do nível do escritório». Lá bem no escuro da Terra, não lhes faltarão as «gaiolas» que os levem. Mas, antes que haja atingido essa parte mecanizada, o homem terá ainda de apelar para os músculos das pernas e o compasso do coração... A Mina—perdão, a contramina—abre, como nas velhas «mágicas» e nos contos do «diabo». á boca da Terra, no extremo de um túnel. Quando se espreita lá para dentro, vêem-se apenas. nos primeiros dez ou quinze metros, um céu abobadado, forrado dos tijolos que os romanos deixaram lá há séculos, e uns degraus de betão, suavemente devorados pela rampa que se perde no escuro. Depois, os homens, em fila, passando um de cada vez, vão descendo, dobrados, pela opressão do espírito e a legenda do tempo, a um silêncio que é sinónimo do instinto de poupar a saúde. Vão calados e atentos á viscosidade dos degraus miudinhos, nervosos com o ruído irritante da água que em muitos lados se escoa pela rocha. E se algum fala, a sua voz tem ressonâncias cavas, talhadas pelo mistério do túnel, pela sua abóbada sem fim, pela densidade do ar frio, penetrante e húmido, pela natureza das paredes e pelo chincalhar da água sulfuroso. que ás vezes corre com a força dos regatos. outras pinga do «céu» como ligeira bátega. Quanto tempo se desce naquela fila indiana, o gasómetro bruxuleante, esguio e enfiado no braço de cada homem, no outro a cesta de vime, dois palmos de alto, nada mais, estreita, e aonde leva a merenda? São ao todo 860 degraus descendo por aquela rampa suave, sem fim que se veja, numa inclinação de 27 graus que durarão a descer os seus 15 minutos, sempre naquele passo lento, grave, cadenciado e soturno — chape, chape, chape... Daqui a oito horas, aqueles mesmos duzentos e cinquenta homens que vão passando em grupos, limpos, todos bem barbeados, de ar sereno, voltarão a subir os mesmos 860 degraus, mas então mais tropegos. um ar bruto, suados, os olhos amortecidos, a barba negra a sombrear-lhes a cara, onde uma ruga cada vez se afunda mais, e os pés pesados, de um peso imenso, arrastando as alpargatas encharcadas na lama, pois em regra só os engenheiros trarão botas cardadas, mais penosas, talvez, no arrastar. Falarão menos, os seus passos serão muito mais lentos, o ar parecer-lhes-á bastante

mais difícil de conquistar e a vista só daí a muito tempo começará a divisar, lá muito ao longe, algures, não se sabe bem onde, uma estrelinha mortiça que lentamente, muito lentamente, começará a alargar, alargar, até tomar a forma da boca da contramina... Dezasseis horas de luz. liberdade, e céu aberto, os esperam. E, sobretudo, além, nos balneários, espera-os o banho quente, suave. que os há-de reconciliar com a vida e com a natureza. Por isso mesmo é que eles jamais dispensarão essa caricia morna da água e a fricção do lençol turco na pele.

A máquina ajuda o homem

Há um século, a Mina de S. Domingos começou a ser explorada a céu aberto e de cima para baixo. Julgavam-na esgotável em pouco tempo, talvez porque não soubessem até onde desciam aqueles 120 quilómetros de massa de pirite, ao longo do distrito de Beja e que engloba Mina de S. Domingos e Aljustrel. Depois, quando o homem teve confiança nos dons enormes da terra e as escavações eram tão fundas que pareciam impraticáveis, começou-se a fazer a exploração de baixo para cima, dentro de »poços» que, á medida que vão sendo esgotados, por andares, serão entivados, isto é, revestidos de enchimento de xistos pretos e terra solta, para suster a derrocada. Este trabalho duro faz-se todo ele sem riscos de maior. Poderão surgir todos os dias acidentes de dedos esmagados, golpes profundos,um arranhão, uma pancada na cabeça. Mas num século de exploração, contam-se pelos dedos os desastres grandes em que terão perdido a vida menos de uma dezena de homens --e quase sempre em acidentes ocorridos por descuido. Para tornar menos penosa a vida ali dentro. muitas coisas foi criando o progresso no rodar do tempo, tornando menos venenoso o ar picante, com um sabor agressivo de mostrada. Ventoinhas eléctricas, pequenos ventiladores de ar comprimido, colocados á entrada de cada poço de extracção, poços de ventilação, com galerias para levar o ar natural, aparelhos de sucção de ar viciado, pequenas máscaras, lembrando simples sacos de café-tudo são bens criados pelo homem, para tornar menos rigorosa a vida destes homens, que nem por terem vida de toupeiras, ficarão sem ligação com o Mundo. Por toda a parte há aparelhos telefónicos, Iigando as galerias entre si, os escritórios e, lá em cima, as casas dos directores-engenheiros e outros técnicos responsáveis. Uma pequena oficina de limpeza e reparação de emergência, uma divisória com o nome de «sala de refeições», armários com material sanitário, macas e operários especializados na aplicação de pensos e mercurocromo, são outras das muitas coisas criadas para aquele mundo subterrâneo, onde as zorritas passam ao longo de cabos, como se fossem fantasmas andando pelo seu pé, ou empurradas nas calhas pelo braço forte do homem da contramina.

O homem da máquina...

O chocalhar da pedra, o discreto tilintar das picaretas, o martelar do ferro, o rodar das zorritas, uma ordem que se passa de boca em boca mais alto, nada chega para quebrar aquela ideia constante, tumular, de que o homem foi reduzido ao silêncio. Fala-se baixo, o ar aqui e ali adensa-se. As vozes têm cada vez um som mais grave e menos ressoante, os corpos vestem-se de um contorno espectral , á luz fátua projectada dos gasómetros que os homens suspendem de ganchos para prender na mão, ao braço, aos cabos e ás próprias fluxuosidades das paredes, nos 100 metros de escadas, subidas a pulso, aos lanços de 20 metros... Da vez em quando, passam pequenos grupos de homens que se deslocam silenciosamente, atentos aos perigos do chão viscoso. Ouve-se um tilintar de pedras, um chocalhar abafado de metais, umas pancadas que soam no outro extremo da mina, á entrada das gaiolas que sobem carregadas de outros homens logo ali adiante tragados pela bocarra escura de uma galeria... Estas subidas e descidas dos elevadores. carregados, para cima, de zorritas» de pirite e para baixo carregados dos xistos para as entivações; são comandadas, lá em cima, na casa da máquina, etapa infernal em que o homem tem a função de um acessório mecanico. E um homem dos seus sessenta anos, este que está aos comandos. Há um calor enjoati-vo, respira-se a muito custo. A voz do homem sai-lhe estrangulada da garganta. Agora,-porém, não fala. Cai-lhe um suor pastoso pela cara e o seu olhar tem expressões de alucinado, fixo hipnóticamente, no quadrante que marca com um ponteiro a posição das gaiolas. Não vê ninguém, não fala com ninguém. O seu ouvido está atento ás pancadas que lá de baixo, das profundezas da terra, lhe transmite o encarregado, vigilante em cada 《andar» do poço de extracção... O estatismo, o silêncio, o calor sufocante são o quadro em- que durante oito horas se vai morrendo esta vida. Se este homem tiver uma síncope, se adormecer, se morrer—metade das pulsações da mina cessarão, embora sem peri-go para as outras vidas, porque a falta de comando implicará uma automática suspensão de movimentos. Diz-se que este sistema é dos mais modernos e veio da Suécia.

Como se extrai o minério

A extracção do minério é, entretanto, aparentemente fácil, segura, rápida e muito pouco sugestiva, para criar imagens literárias... O barreneiro é o senhor de uma máquina pneumática de coluna que funciona a ar comprimido, com injecção de água, para evitar as poeiras. A broca de aço que o mineiro ali chama barrena—e, por isso, este é o barreneiro—perfura a massa mineral aqui, ali, além, cinco ou dez vezes, com pulso forte, porque a pirite é dura e resiste á compressão. Cada orifício é o ninho de um mínimo de explosivo—pólvora que daí a pouco, fará esboroar-se a rocha indómita, para que as alavancas, que o arraiano conhece ali por palancas, concluam o seu desprendimento. Virão agora as zorritas buscar o minério, pedras azuladas, de finos reflexos, mais pesadas que a consciência de assassinos. Subirão nas gaiolas ao piso superior, onde circula o cabo de 750 metros, que as levarão até á boca da contramina, para as lançar nos vagões. Estes as levarão a Pomarão para serem assim mesmo embarcadas, ou á Achada, para serem transformadas em enxofre.

A força vem do espírito

E' um trabalho violento, regado com o suor do rosto e do tronco nu, este dos dois homens que, com a albarca e o rodo-uma cesta de ferro e um pequeno sacho-vão passar o minério para as zorritas. Vendo-se olhados nos

seus movimentos rápidos e aparentemente tão fáceis, um mineiro de dura musculatura pergunta: —Então, isso é bonito? Na pergunta parece haver ironia. Mas ele não conhece as duras penas de quem vai ao fundo da mina, uma só vez na vida, para conhecer aquele mundo de coisas desconhecidas...

Aliás, logo há quem explique que a pergunta não tem laivos de malícia, mas aquela singeleza da gente boa e cativa dessa bela região, vendo passar não sem alguma surpresa quem não pertence aos seus quadros de trabalho. Respondemos ao homem: —Não acho que seja bonito, isso que o sr está a fazer. Penso, pelo contrário que é uma coisa muito dura e muito séria. Estava agora a avaliar a importância do seu trabalho. Quanto ganha? E, sem parar, o mineiro reponde:

—Vinte e sete. Tenho mulher e quatro filhos.

—E quantas zorritas enchem os dois homens por dia?

—Quinze a vinte, cada dois homens. Daqui, nas calhas, vamos levá-lo ás gaiolas.

Fazemos a conta: a 900 quilos cada »zorrita»—cerca de 14 a 18 toneladas de minério passam pelas suas mãos em oito horas... Estranhamos-lhe a força mas ele explica com palavras textuais:

—É mais o espírito que a força.

Eles são a «família»

Vai ser rendido um turno de trabalhadores. Pelo caminho, nos patamares e galerias mais espaçosas, sentam-se em rolos e pedras, á espera que soe o sinal de começar ou que cheguem as «gaiolas» que os levarão ao «poço 240» ou ao «poço 300». Vêm todos com um certo ar repousado, de barba feita e ainda sem a máscara trágica do suor e da força despendida. Enquanto esperam, com a cestinha da merenda ao lado, vão-se entretendo a petiscar uma guloseima—uma laranja que lhes custou três tostões, uma sardinha com um ramo de salsa sobre a fatia de pão centeio e cevada.

—Por que não procuram outra vida?

—Este é o nosso destino. Somos para aqui atraídos e nunca mais nos podemos ir embora. Já foi assim com os nossos pais e há-de ser o mesmo com os nossos filhos...

João Martins, de 70 anos de idade e com 40 de contramina, é um homem miúdo e rijo. Está proposto para receber a medalha de mérito industrial. Ele que é capataz geral do turno, começou a trabalhar aos 8 anos, nesse tempo em que a lei do trabalho era apenas a das necessidades. Quando chegou a barreneiro e extraía o minério, ganhava 6 tostões. Foi isto há 50 anos... Hoje ganha um conto e trezentos, que lhe chega e sobra para ajudar os filhos casados, um dos quais, o Valentim, lembra-o com orgulho, foi guarda-redes das reservas do Sporting... Esse atavismo fatalista da Mina tem, aliás, as suas razões mais fundas. Quase todos são parentes. Nenhum é inimigo do outro. Quando se referem uns aos outros ou ao mundo dos homens da contramina, não se referem aos camaradas, aos companheiros, aos colegas:

—Já desceu a gaiola com a «família» do poço 240?

Este regime de trabalho violento, entre correntes de ar frio que alternam com 39 graus de temperatura, não deve ser totalmente incomportável, pois nem sequer se assinalam as chamadas «doenças do trabalho». Além de que, entre os 1.400 homens da Mina, há cerca de 150 operários, com 50 anos de trabalho—trabalho lento, lentamente executado, já que o clima lhes amolenta os músculos...

—Todos nós, aqui—disse-nos um Inglês —até mesmo os Portugueses de outras regiões, sentimos os efeitos do calor, a que não será estranha a constituição geológica do solo nem a presença recente do sezonismo.

E, perguntando de repente: —Se depois disto tivesse que descrever as suas emoções, colhidas na contramina, qual seria de todas a mais funda? A da profundidade? A da extensão?...

—Não, a do esforço do homem!

E com esta opinião, sincera homenagem ao nosso humilde irmão, mineiro alentejano que tão violentamente triunfou da charneca, findará este esboço de retrato da terra e gentes que ele ajudou a fundar. com o suor do seu rosto e a carinhosa e tutelar jurisdição da Mina...