Mina de S. Domingos Testemunho do capitalismo selvagem

Ano: 
2004
Autor: 
Carlos Dias
Editor: 
Jornal Público
Descrição: 

Mina de S. Domingos Testemunho do capitalismo selvagem

No principal aldeamento da mina alentejana de S. Domingos chegaram a viver dez mil pessoas. Uns passaram fome e sofreram epidemias, outros lutaram pela cultura, fundaram jornais e grupos de teatro. O cenário onde fizeram a vida foi devastado pela indústria, primeiro, e pelos ladrões de sucata, depois. O Estado português, que durante 112 anos se alheou do destino de dezenas de milhares destes homens, presta-lhes amanhã a sua primeira homenagem. Por Carlos Dias

O Presidente da República desloca-se amanhã a S. Domingos, onde inaugura uma estátua ao mineiro erguida pela Câmara de Mértola. Trata-se da primeira homenagem do Estado português, que durante 112 anos se alheou do destino de dezenas de milhar de trabalhadores empregados por companhias estrangeiras.O cenário de destruição que é dado a observar a quem percorra o extenso território do couto mineiro de S. Domingos faz lembrar uma hecatombe nuclear. A terra foi esventrada ao longo de mais de cem anos, em que 25 milhões de toneladas de pirite alimentaram o crescimento industrial do norte da Europa e dos EUA no final do século XIX e início do século XX.Depois do saque a que a mina de S. Domingos foi sujeita por sucateiros logo após o encerramento, em 1966, ficou uma paisagem desértica, de terras vermelhas revolvidas pela extracção da pirite, cobertas por milhões de toneladas de escórias e cinzas. Crateras resultantes da lavra mineira e as dezenas de quilómetros de galerias abertas na terra para a extracção de cobre, prata e ouro, foram propositadamente inundadas. Surgiram lagoas de águas ácidas de onde emana um cheiro intenso a metal e a enxofre.

"Nada escapou"

O arqueólogo Miguel Rego, que faz o levantamento histórico e arqueológico a partir dos destroços que ficaram da exploração mineira, descreve o que aconteceu logo a seguir ao encerramento da jazida: "Todo o material foi vendido para sucata ou roubado. Nada escapou. Máquinas que ainda se encontravam encaixotadas, fresas, motores, compressores, peças novas, carris, parafusos, porcas, tudo o que era metal, incluindo a rede de canalização de água, pontões do caminho-de-ferro, mais de 20 locomotivas, postos de luz, etc." Tudo foi levado numa rapina desenfreada que ainda prossegue nos dias de hoje. O arqueólogo foi há poucas semanas alertado para mais uma acção dos sucateiros. Quando chegou com a GNR a um poço de ventilação da mina "já tinham levado as caixas metálicas que prendiam o hélice". Recentemente, deram-se ao trabalho de "recolher oito toneladas de parafusos e porcas" ao longo dos 17 quilómetros do antigo caminho-de-ferro, "cujos carris também foram roubados". No antigo porto do Pomarão, no rio Guadiana, onde era embarcado o minério em direcção a Vila Real de Santo António, "apareceu um indivíduo para levar a grua que ainda resta. Mas a população não deixou", conta Miguel Rego. O grau de destruição perpetrada na mina de S. Domingos "é o sinal flagrante do tipo de capitalismo selvagem que caracterizou a exploração do recurso pirítico", descreve Jorge Custódio, especialista em arqueologia mineira, no seu livro "Mineração no Baixo Alentejo", editado pela Câmara de Castro Verde. Heitor Domingos, que nasceu em S. Domingos e é filho de mineiros, descreve no seu livro "Recordações" que durante muitas décadas "as chaminés da fábrica cuspiram baforadas de fumo espesso e negro", espalhando cinzas numa grande área. A água e a terra contaminadas durante mais de um século foram deixadas por tratar, sem que até hoje as autoridades pedissem responsabilidades à empresa La Sabina pelo dano social, ambiental e patrimonial cometido.

Morte, epidemias e fome

Extrair 25 milhões de toneladas de pirite durante 112 anos custou a vida a 237 mineiros em quase 5700 acidentes de trabalho. Até 1913 mais gente perdeu a vida em S. Domingos do que em todas as restantes minas portuguesas. Os mineiros suportaram um surto de febre tifóide (1897), uma epidemia de varíola (1904) e a tuberculose. Para combater as febres, o Governo determinou em 1878 a plantação de mais de dois milhões de eucaliptos, em redor e no interior do couto mineiro. O coberto vegetal ainda permanece.Entre 1966 e 1968, período entre o encerramento da extracção mineira e a falência da firma Mason & Barry - a quem a La Sabina concessionou a exploração -, assiste-se a uma das fases mais negras da história da mina. Os salários deixaram de ser pagos e a fome atingiu as famílias dos mineiros, obrigando o chefe do posto da GNR de Mértola a lançar um apelo aos seus superiores, alertando-os para as consequências resultantes do comportamento da empresa inglesa. "Nalguns lares há fome e parte das crianças vão à escola sem comer e outras recorrem à caridade pública pedindo esmola", escreveu ele no seu relatório. A falta de pagamento dos salários, relatava o militar da GNR, "estava a ser provocada pela empresa para levar os operários a despedirem-se por sua iniciativa, para evitar pagar as indemnizações". Não restou outra alternativa aos mineiros desempregados que não fosse emigrar para as minas de carvão da Bélgica ou das Astúrias, da Panasqueira, Lousal e Aljustrel. Partiram quase todos, mas algumas dezenas estão a regressar, reformados, para viver o resto dos dias nas suas antigas casas, adaptadas às exigências de hoje. A visita que Jorge Sampaio realiza amanhã a S. Domingos representa o primeiro gesto de reconhecimento do Estado português aos que ali trabalharam. Sampaio vai poder observar no local como as características arquitetónicas do bairro mineiro foram adulteradas por quem veio de fora da região para promover a especulação imobiliária. A Câmara de Mértola está a desenvolver a recuperação dos fogos, mantendo uma apertada fiscalização nas intervenções que se pretendam fazer. Outros projectos estão em curso para alterar as condições de habitabilidade, como é um caso da instalação de uma rede de abastecimento de água e esgotos.

COMPLEXO MINEIRO COM PROJECÇÃO MUNDIAL

Entre 1858, com a instalação do couto mineiro, e 1965, quando cessou a exploração da pirite, muita coisa mudou em S. Domingos. Histórias de um complexo que chegou a pôr em xeque a estrutura mineira europeia

CARLOS DIAS

Em 1851, o francês Nicolau Blava descobriu num local ermo de terras pobres da serra de S. Domingos uma importante jazida de pirite. Apenas no lugarejo do Montes Altos, na periferia do que viria a ser o maior couto mineiro da Europa no final do século XIX, vivia pouco mais de uma dezena de pessoas.

A partir de 1858, com a instalação do couto mineiro, trabalhadores alentejanos, algarvios, beirões, espanhóis e ingleses criam cinco novas aldeias dentro do recinto industrial, entre elas S. Domingos onde chegaram a viver quase dez mil habitantes. Um ano depois, a empresa La Sa bina, concessionária da mina, cede a exploração a James Mason, que se associa a um cunhado, Francis Barry, para criar a Mason & Barry. Mason arquitecta o bairro operário."organizando os fogos em correntezas independentes, marcados na fachada por uma porta e uma chamine", segundo descreve Jorge Custódio. As caracteristicas arquitectónicas do bairro original estão hoje em grande parte adulteradas.

Estruturado o complexo mineiro, Mason dá inicio à exploração da jazida. Em 1860 foram necessárias mais de 18 mil viagens em carros de muares para levar o minério até ao porto do Pomarão, no Guadiana, localizado a 17 quilómetros de S. Domingos. Dois anos depois, o caminho de ferro substitui o transporte animal. A empresa constrói um hospital, uma central eléctrica, instala o telégrafo e o telefone.

Meia dúzia de anos mais tarde, o valor do cobre bate no fundo. Há uma crise profunda no sector mineiro europeu. A Mason & Barry, quando percebeu que as acções estavam em queda, inicia a exploração a céu aberto, levando à remoção de uma colina com três milhões de metros cúbicos de terras, operação que levou 20 anos a concluir. Contudo, a alternativa revelou-se acertada, porque a empresa recuperou a liderança mundial na extracção da pirite. Parte da estrutura mineira europeia é então afectada pela produção portuguesa, que ganha uma forte capacidade competitiva.

O arqueólogo Miguel Rego salienta que no início da exploração a jazida portuguesa "produzia metade da pirite que o mercado inglês necessitava", levando ao encerramento das minas de cobre irlandesas. A partir dos anos 90 do século XIX, o cobre alentejano quase levou ao colapso a extracção de pirite na Bélgica.

Em 1912 saíram da jazida de S. Domingos 432.350 toneladas de pirite, a mais alta cifra registada na história da mina. Depois da Grande Guerra, a partir de 1920, o declínio da exploração mineira em S. Domingos dá os primeiros sinais. A instalação de altos fornos, em 1934, para a produção de enxofre, representa uma derradeira tentativa para viabilizar o complexo mineiro, que já se encontrava em crise. Quando cessou a exploração da pirite, em 1965, o volume de minério extraído atingiu as 66.823 toneladas. A rede de galerias tinha sido escavada ao longo de 112 anos até uma profundidade de 420 metros e numa extensão de várias dezenas de quilómetros.

O tempo de vida útil da mina chega ao fim porque o enxofre "deixou de ser importante para a CUF, na medida em que o compravam mais barato noutros sitios", explica Miguel Rego. Após a Segunda Guerra Mundial, a empresa do Barreiro passara a ser o grande consumidor de pirite para produzir enxofre.

Hoje sabe-se que a grande massa de minério saída de S. Domingos tinha enormes concentrações de cobre, prata e ouro. "Há registos, em jornais a editados entre 1918 e 1920, onde se refere que o ouro era muito importante para o financiamento da mina", observa Miguel Rego.
Em meados dos anos 90 do século passado, os espanhóis mostraram interesse em explorar este metal precioso, que poderia persistir nas escombreiras deixadas durante a extracção. "Segundo os geólogos, estarão ali entre duas a quatro gramas de ouro por tonelada", diz o arqueólogo.