FERREIRA DE CASTRO,FRAGMENTOS

Ano: 
1929
Autor: 
Ferreira de Castro
Editor: 
Guimarães & companhia editores
Descrição: 

Fragmentos por Ferreira de Castro

HISTORIAL DA VELHA MINA
HAVIA ainda alguma tolerância, embora cada vez mais rara e encolhida, quando em 1928 ou 1929 as toupeiras da Mina de São Domingos enviaram ao jornal um apelo desesperado. Nas galerias deficientemente entivadas, eram constantes os acidentes, a morte fazia parte daquelas sombras bailantes que as lanternas iam criando à frente dos homens, no chão, nas abóbadas e nas paredes enquanto eles laboravam. E, cá fora, os mineiros e suas familias viviam em fabulosa miséria.
Adelino Mendes redigiu o artigo. E por esse acolhimento estimulados, os homens voltaram a escrever. Pediam que o jornal mandasse alguém à mina — eu, se possível - para verificar com os seus próprios olhos os perigos a que eles se aventuravam todos os dias.
João Pereira da Rosa deu-me a ler a carta. Vozes subterrâneas, vindas de longe, clamores de socorro, que me atraiam solidariamente, a certa altura formulavam, de modo imprevisto, um ingénuo romance policial. Quem quer que ela fosse devia seguir as instruções secretas ali confidenciadas. Devia fingir-se de caixeiro-viajante de cabedais, com maleta é mostruário, pois seria espionado pelos vigias da empresa britânica desde que tomasse a camioneta em Beja, até que a Beja regressasse.

Sorri certamente. Dir-se-ia que os ingleses de Š. Domingos tinham mais olhos do que de janelas um arranha-céus, para ver ao perto e ao longe; e mais ouvidos do que poros havia na minha pele.
Pereira da Rosa perguntou-me se eu queria ir. Ele estava sentado na cadeira de rodígio e eu debruçado em sua alta secretária, de tampa corredia como um estore, dessas a que chamam de «ministro». Respondi-lhe que sim, mas não a simular de caixeiro-viajante, que tão grave problema não de via, em meu critério, ser tratado de maneira sensacionalista.
- Concordo. Já tinha pensado nisso. Precisando de mais esclarecimentos e acerto de pormenores, algumas cartas troquei ainda com o Sindicato dos Mineiros; e quando, naquela tarde dum Outono que começava com algum atraso, subi para a camionete em Beja, observar discretamente o motorista e os cinco ou seis passageiros que nela se arrumavam. Tudo me pareceu normal. Não podia eu então imaginar sequer o desfecho que viria a ter, em Lisboa, a vigilância de que fora prevenido.
Pela estrada de Mértola, que nunca percorrera e por isso mesmo talvez fosse pensando em Mariana Alcoforado e nas «Cartas da Religiosa Portuguesa», onde aquela vila é citada, já a noite se havia fechado quando cheguei à Mina de S. Domingos. Da aldeia viam-se apenas algumas raras luzes dispersas nas trevas e só se ouvia um arquejar pausado de máquina, trabalhando algures.
Na pensão, que arvorava o título de hotel, o gerente acolheu-me com palavras poucas e modos frios:
- Só tenho um quarto de três camas. - Mas não vai mais ninguém para lá, não é verdade?
Se vier mais alguém, claro que vai.
- Nesse caso, é favor acordar-me. Virei dormir aqui, no chão, se for preciso. Aqui ou em qualquer outra parte. Com outras pessoas no quarto não consigo dormir.
A hostilidade do primeiro homem com quem eu contactava em São Domingos era tão evidente como o olhar lateral e suspeitoso que ele me lançou de alto a baixo, ao ver-me surgir na sala.
Jantei na mesa colectiva, com os outros hóspedes, naquela noite apenas dois ingleses, loiros, altos e jovens. E dizem-me as provas tipográficas da primeira crónica que escrevi sobre esta velha andança, papéis já um pouco escurecidos pelo tempo, mas muito vivos ainda, que a Lua nascia para os lados de Espanha e a máquina continuava a resfolegar na mina, quando voltei, depois do jantar, ao largo onde havia descido da camioneta. Era um terreiro mal iluminado, coberto pelas franças das árvores que o cingiam e lugar de convívio devia ser, porque vários grupos difusos ali conversavam pacatamente. Dois homens vieram ao meu encontro, conforme se estabelecera numa das cartas que eu havia recebido; e pela estrada fora me levaram ao Sindicato, onde a direcção estava já à minha espera.
Nem o fumo dos cigarros, coalhado na pequena sala, nem as palavras sorridentes das apresentações, evitaram que eu pressentisse serem más as novas, logo que ali entrei. Soube então que os concessionários ingleses haviam recusado de manhã, nesse mesmo dia, a minha entrada na mina. - Mas isso é contra eles próprios, pois assim
pode-se julgar que receiam as vossas acusações...
Alguém encolheu os ombros. Outros desfilaram pormenores, deram exemplos. - Têm muita força.
O secretário do Sindicato disse-me: - Claro que não ficamos parados. O contra-mestre que devia estar de seviço na madrugada de hoje, é da nossa confiança. Falámos-lhe e prometeu-nos deixá-lo entrar, a si, disfarçado de mineiro. Mas eles decerto souberam, porque o transferiram para outra noite,
Era um ambiente de frustração, que a todos mo lestava, e o ruído da máquina, sempre a trabalhar na mina, dir-se-ia um sarcasmo, um desafio lançado à nossa derrota.
- Se eu tivesse vindo como se fosse um caixeiro -viajante, eles não saberiam?
Houve um silêncio e os homens entreolharam-se, como para unanimizar a resposta.
Havíamos pensado que talvez não. Mas não era certo. Há sempre pessoas que falam de mais. Pessoas que não podem guardar um segredo. Além disso, temos outras desconfianças... A verdade é que eles sabem sempre tudo. Voltáramos ao romance policial, às admissões mal definidas, para lá duma certa luz de antiga pintura flamenga que se esbatia nas sombras próximas; e aquela trama cada vez me preocupava mais, por envolver um caso profundamente sério.
- Irei eu próprio, amanhā, falar com a empresa. : E, assim concertados, saímos para eu ver, nessa noite dum luar avarento, que não conseguia emprestar sonho algum à realidade, as míseras quadras onde viviam os mineiros que me acompanhavam e os seus dois mil camaradas, com as mulheres e os filhos.
Longas edificações térreas, em várias filas, muito baixas e compartimentadas, não apresentavam uma só janela. Tinham unicamente portas. Portas a seguir a portas. E se não igualavam inteiramente as cavalariças dos fidalgos de outrora, era apenas por se rem bastante mais pobres e muito mais humildes. Cada porta correspondia a um quarto, cada quarto a uma família. Algumas encontram-se ainda abertas àquela hora, outras abriam-se ao chamar discreto dos meus guias.
O quarto servia de cozinha, de sala e dormitório; e à noite, nessa promiscuidade absoluta de corpos e de frangalhos, os pais, se eram respeitadores, apagavam a luz ou voltavam as costas, quando as filhas já crescidas se despiam. Todas as imposições da vida, as suas intimidades, os seus odores, as suas emergências, se desenrolavam entre estas quatro paredes. 'A qui se procedia à sementeira de crianças, aqui elas nasciam, aqui a maioria delas falecia, por carência de higiene e de alimentação adequada aos seus corpos tenros e indefesos. As sobreviventes gatinhavam no soalho encardido, sujas, babadas, entre farrapos avulsos, colchões estendidos no chão, cobertores amarfanha dos sobre eles; e nos seus arrastares iam tombando as panelas sob a chaminé existente ao fundo ou fazendo tremer a pequena mesa onde a mãe preparava os alimentos para o lume e mais tarde a família os comeria. Algumas conseguiam emergir de toda essa mondongaria até o rebordo da cama dos pais, onde assomavam os seus rostitos inocentes, os seus olhitos duma curiosidade embrionária, como se nos mirassem do peitoril duma janela que lhes faltava.
Fumarentos candeeiros iluminavam estas cenas noite, e batendo os contornos dos seres e das coisas e mal definindo os movimentos, como nos pesadelos. De dia, uma vaga claridade engolfava-se receosamente através do postigo cortado na parte cimeira da porta, que assumia o mesmo papel duma lanterna nos poços negros da mina. Por lá penetrava também o ar que se gastava ali, o ruído da máquina trabalhando incessantemente ao longe e, no Inverno, o frio, quando se abria essa pequena lucarna verti cal, para ajudar a sair o fumo da lareira, nas horas em que a chaminé não o tirava capazmente, Estas infelizes mulheres, produtores dum herois mo quotidiano, sem lugar nas histórias oficiais e nos livros escolares, onde se celebram apenas os heróis que o foram por matar copiosa gente, estão impedidas de igualar as suas outras irmãs alentejanas, que mantêm as casas populares mais asseadas e mais esteticamente ordenadas de todas as existentes em Portugal. Falta-lhes espaço. Não é numa tulha que a estética floresce, tão-pouco num velho depósito de trapos. Os olhos carecem de alguma distância para avaliar os objectos, uma distância que somente a desordem dispensa, porque lhes impõe o seu conjunto. Eu olho esta frandulagem inevitável, estas crianças arrastando-se no chão com o seu quê de rãs na lama dum charco, estes homens saídos há pouco das veias da terra que eles próprios abriram e onde amanhã voltarão, estas mulheres safadas, que ficam acanhadamente silenciosas enquanto eu olho e sinto-me sufocado.
Um dos mineiros que me acompanha, velho lutador, vai-me falando baixinho das suas esperanças e do sol do Amanhã. E eu ouço-o enternecidamente, porque o Amanhã é um medicamento psicológico enquanto não chega o dia desejado, um medicamento de que todos os explorados carecem e aos deserdados não é mesmo permitido outro.
Do alto duma parede, na maioria destas quadras, a imagem de Cristo preside indiferentemente ao espectáculo. E vendo-a, vozes já antigas ressoam-me no cérebro, voltando a perguntar-me como tem sido possível aos donos do nosso planeta adorarem aquele homem revoltado e ao mesmo tempo aceitarem e fruírem, ao longo de dois mil anos, sem problemas de consciência, uma sociedade que chancela tal desrespeito ao ser humano? Que o chancela não só aqui, mas em incontáveis partes do Mundo, onde frequentemente ela mantém aspectos ainda mais sinistros, mais dramáticos ainda do que estes que tanto me ofendem, a começar pelos meus olhos.
Havia muito sol e o contraste era violentissimo» — lembram-me as notas que enfileirei então. Nesse Estio generosamente prolongado, o sol iluminava-me os passos quando, na manhã seguinte, me dirigi sozinho aos escritórios da empresa. Já na véspera eu tinha visionado este trecho de São Domingos, no momento de a Lua nascer. Mas tudo quanto era então difuso, vultos de casas despindo-se vaga mente das trevas, sombras indefinidas, sugestões apenas, se volvera muito nítido e fulgurante, como um burgo saído do nevoeiro. Até as escórias arrancadas ao subsolo, até o férreo material existente na boca da mina, pareciam menos grosseiros e menos negros sob as tintas brancas daquela luz matinal e vibrátil,
Fui subindo a encosta suave onde habitavam os ingleses, fui subindo e olhando lentamente. Vilas graciosas, tão limpas, tão confortáveis, com jardins rentando as fachadas, espaireciam as suas formas e a policromia do seu conjunto na diafaneidade azul da manhã. E eram um milagre esses jardins ainda viçosos na estação em que o verde da Natureza se enferruja e principia a acobrear-se mortalmente. Falavam-me as plantas e as flores dos pertinazes cuidados tidos pelos jardineiros portugueses para que elas prosperassem naquela terra vermelha e afogueada, onde aparentemente só vive feliz a oliveira, por ser árvore de tanta resignação e sobriedade nas ambições como se fosse originária dos desertos.
Subindo um pouco mais, encontrei-me junto do «Palácio», como lá lhe chamavam e de certa maneira o era. Cercado de arvoredo, luzia um pátio todo florido e vasto lago ao fundo, piscina para volúpia dos corpos e mesmo dos espíritos, na época das fortes canículas alentejanas, quando os bafos infernais tanto parecem baixar do céu, como emergir dum incêndio, secreto e imensurável, sob a crosta da terra. Um verdadeiro palácio, se o comparássemos aos «montes» dos ricos lavradores do Alentejo, atarracados e compridos casais de nula arquitectura, branquejando solitariamente no alto das lombas.
Como escritor, eu preferia que este oásis em São Domingos, a ter de existir, campeasse noutra parte. Não que o meu espírito recusasse aos ingleses o direito de viverem confortavelmente, desta ou doutra forma, pois que eu desejo o bem-estar para toda a Humanidade. Não também que lhes debitasse as responsabilidades duma sociedade provinda de há muitos milénios e funcionando em prol duma minoria somente, com danifício para todos os outros homens; não, porque na própria Inglaterra os explorados sociais contavam-se por milhões e os grandes privilegiados apenas por milhares.
Mas os escritores abominam percorrer os caminhos literários já trilhados, Amar unicamente o que lhes parece inédito é o seu destino e basta uma só frase, se lhes soa a original, para os tornar momentaneamente mais ditosos do que, decerto, aos concessionários desta mina a descoberta de um novo filão de cobre.
Ora as álacres vivendas dos ingleses, postas mesmo em frente dos soturnos casebres dos mineiros, nos dois moderados declives que constituem as abas do vale, retiram-me toda a originalidade. Retiram -ma, porque rudes contrastes como este, vigentes em tantas nações do Mundo, já foram copiosas vezes inscritos na Literatura, até por mim próprio. E humildemente confesso que em literatura sempre desdenhei as repetições, os êxitos fáceis e a vulgaridade.
Mas os lugares-comuns tornaram-se comuns justamente por exprimirem, em síntese, a essência das verdades. E esta confrontação entre as consequências da riqueza de uns e o resultado da miséria de outros é mais esclarecedora do que as acareações entre os acusados e as testemunhas, nas audiências dos tribunais.
Avaliados do lado estético, são muito importantes para mim, como escritor, os terrenos literários que julgamos nunca terem sido devassados; mas as razões que este violento cotejo me sussurrava na- quele dia, por serem colectivas, transcendiam-me grandemente. A sede de justiça deve ser clamada inúmeras vezes, clamada até que a justiça venha apague a sede, pois um só grito na noite pode e despertar quem dorme, criando breves momentos de expectativa e de incerteza, mas, se outros gritos não lhe sucederem, acaba-se por voltar ao sono.
As duas ligeiras encostas que eu via, defrontavam-se no jeito de volantes dum tríptico que hou vesse caído do céu e ficado horizontal e semiaberto. Num, os réprobos em tons sombrios; no outro, os elei tos em jubilosas cores; e, no painel do centro, a bocarra negra da mina.
Sei quanto é elástica, flexível, massa tenra, & capacidade humana para se adaptar à diversidade das circunstâncias, mesmo as mais insólitas, as mais esperas e dolorosas, já que todos nós transportamos na carne e no espírito, ignoradamente, o colchão de pregos dos faquires. Mas se eu residisse numa destas casas, talvez nunca me habituasse a abrir ao sol matinal a janela do meu quarto sem pensar nos casinhotos da outra vertente, onde a luz solar se enfia por um espaço pouco maior do que o duma dessas malhas de ferro que servem de grades aos cárceres.
Era no «palácio que os escritórios da empresa funcionavam e se verbalizavam as ordens. Eu não confiava em mim, mas esperava que respeitassem, ao menos, o jornal. Entrei, expus a identidade, pedi para falar ao director.
- Não está. Foi ontem para Lisboa.
Com novo pressentimento e visionando difusa mente um automóvel britânico a avançar pelas estradas do Sul, porventura sobre as sucessoras daquelas por onde haverá trotado o cavaleiro de Chamilly, teimei;
-- Tenha paciência, preciso absolutamente de falar com alguém da direcção. O funcionário fixou-me um instante, logo desapareceu ao fundo da sala. E tardou, certamente em
conciliábulos e hesitações. Ao voltar, disse-me: O senhor engenheiro de serviço, que substitui, hoje, o senhor director, pode recebê-lo às cinco da tarde. Com aquela promessa saí e para o hospital caminhei. Erguia-se num planaltozinho, a dominar as redondezas como um templo e a impor-se a mim como um símbolo. Aliado dos mineiros, o enfermeiro permitiu-me examinar o grosso livro. Era verdade tudo quanto os homens haviam comunicado ao jornal. Estávamos no começo de Outubro e desde o começo de Janeiro tinham sido inscritos, naquelas folhas ensebadas, mais de mil e quatrocentos acidentes -- mil e quatrocentos acidentes em menos de trezentos dias.
A boca do túnel, que dava acesso aos poços e às galerias da mina, encontrava-se mesmo em frente do hospital, como dois velhos associados numa em presa de vasta clientela. E enquanto eu olhava a negra abertura, o enfermeiro explicava-me que os feridos saíam nos braços dos camaradas e neles vinham, declive acima, até ali; se sofriam, porém, esmagamentos ou fracturas graves, dois ou três gritos bastavam para que a maca descesse e os trouxesse.
Se os homens feridos não podiam queixar-se da distância entre o desastre e o tratamento, tão-pouco os homens sãos não podiam lamentar-se da falta de ordem pública. Sobre a entrada da mina existia um pequeno viaduto, de onde a guarda-republicana vigiava, dia e noite, o comportamento dos mineiros.
O ruído da máquina que pautava ininterruptamente a vida de São Domingos chegava muito vigo. roso ao hospital. Era ali uma presença constante, ordenada, sempre igual; dir-se-ia inevitável como uma fatalidade. Talvez nessa manhā o ater asge ligeiramente o sol que cobria o vale e as encostas, iluminando os topes dos eucaliptos, as moradias dos ingleses, os cubículos dos mineiros e aproximando-se lentamente, lentamente, da negra fauce da mina, aberta lá em baixo, diante de mim. Aproximando-se sem jamais entrar, pois se o Sol nunca tinha sido ainda para todos, ali o era muito menos.
A tarde, o engenheiro inglês, substituto do director, disse-me:
- Não posso autorizar, são ordens antigas, quando vim para aqui já as encontrei. Ninguém que seja estranho aos serviços pode lá entrar. Era alto, magro, correcto tanto nos modos como nas palavras, e há muito devia residir em Portugal,
porque falava a nossa língua quase bem. Respondi-lhe que considerava aquilo bastante grave, que esse acto negativo podia sugerir, mesmo sem ser verdade, a confirmação das acusações expressas pelos mineiros; e, finalmente, que o número de acidentes, já registados nesse ano, era espantoso.
- Pequenos acidentes, quase todos. Afirma-se que as galerias estão mal entivadas. Pois bem! Trabalha connosco um engenheiro português e, se o senhor quiser, eu peço-lhe para ele o informar sobre o verdadeiro estado da mina. - E funcionário da empresa?
E
Solicitei, então, ao inglês que se imaginasse na minha situação e depois me dissesse se aquela oferta lhe parecia interessante. Acrescentei ser meu dever admitir que o seu colega lusitano não ofenderia a verdade, mesmo que por amor da verdade houvesse de sacrificar abnegadamente o posto que tinha ali. Mas logo uma dúvida se imbricaria às suas palavras, se imbricaria natural e inevitavelmente, pois que não se me permitia verificar se era ele, de boa jerarquia na empresa, ou se eram os mineiros que falavam com exactidão perfeita.
- Só o director poderia fazer uma excepção, mas, como já lhe disse, ele não está.
Convenci-me de que o encontro com o engenheiro português não se realizaria, por fecundar mais desconfianças do que esclarecimentos sobre a questão; mas também nisso me enganei.
Já o sub-director da mina, de onde se extraía cobre, um dos metais de que se faz dinheiro e na Bolsa de Londres se podia mesmo converter em oiro, entrava irreflectidamente nos paradoxos da socie dade imperante: - Acusam-nos também de pagar salários miseráveis. Não digo que sejam altos. Alguns mineiros ganham diariamente treze escudos, a maioria nove ou dez. É pouco, evidentemente. Mas em Portugal todos os salários são baixos. E no Inverno, quando os lavradores já não precisam de braços, muitos homens vêm aqui oferecer-se para trabalhar por vinte e cinco tostões apenas.
Estávamos sentados um em frente do outro, o inglês com os seus quarenta anos loiros e um coto velo apoiado no rebordo da secretária; eu na vizinhança dos trinta e ambos procurando segurar o diálogo com um timbre sereno, por cima do diabo invisível que separava nós dois.
Sim, tem razão, as casas onde eles vivem não são boas. Mas eu conheço Portugal inteiro e, nas Beiras e em Trás-os-Montes, há muitas piores ainda. E a realidade é que, apesar de tudo, alguns dos homens que saem daqui, em busca de melhores condições de vida, regressam meses ou anos depois e até choram para que os admitamos novamente ao nosso serviço.
Fiquei a olhar, muito calado, o inglês. E jamais pude esquecer o minuto nocturno, tão denso de problemas e de fumo, em que um grupo de mineiros me confirmou, mais tarde, no Sindicato, ser verdade o que ele me dissera, ser verdade que a miséria torna ilimitadas as humilhações dos explorados perante os que não prosperariam sem eles.
Sempre me repugnou, em todas as situações da vida, articular os argumentos patrióticos que separam os homens, criam valorizações falaciosas, recalcados vexames e ódios muitas vezes. Mas o meu interlocutor, sem abandonar a calma das suas frases e exemplificando em nome de interesses longínquos, de gentes desconhecidas e gulosas, que decerto nunca haviam sido mineiros, nem viviam em habitáculos como os dali, ia sempre me cerceando mais a liberdade, mínima que fosse, na terra onde & verdade me fugia. E bastos pormenores, vistos ou pressentidos desde que eu chegara ali, me sugeriam que as minhas deslocações em São Domingos eram real mente espiadas, como o garantiam os mineiros, Venci, portanto, a repugnância e declarei, quando a controvérsia, doente e sem horizonte, estava prestes a falecer:
Os senhores têm a concessão do subsolo desta aldeia e, certamente, o direito de não consentir que entre na mina quem não for do vosso agrado. Ignoro se dispõem também de alguma regalia especial na superfície; mas, se a possuem, ela não impede que isto seja território do meu país. Comunico-lhe, pois, que enquanto eu estiver aqui me reservo a liberdade de andar por onde entender, mesmo pelos arredores da mina, donde, aliás, desejo assistir à entrada dos mineiros, logo à noite. Naturalmente, se alguma coisa me acontecer, a responsabilidade será vossa.
- Pode andar à vontade - respondeu-me o inglês, distendendo o braço para o botão da campainha
A porta descerrou-se imediatamente e com alguma estranheza minha vi surgir, para atender a chamada, o pequeno homem que geria o hotel. Pareceram-me quase incompatíveis a função de senhor gerente num lado e a de humilde contínuo num outro, tudo nas instalações da mesma empresa; mas já o inglês, que empregava comigo um tom de igual para igual, lhe ordenava com voz superior:
— Diga ao sargento da Guarda Republicana que preciso de falar com ele.
Fui dali para o Sindicato, anunciar a minha der rota. Como em São Domingos se trabalhava por turnos, ia-me cruzando com muitos homens que só às onze e meia da noite entrariam na mina. Alguns dos conhecidos na véspera, aquando da visita aos seus tugúrios, detinham-se, palavreavam, interrogavam -me, arrepiando mesmo caminho para me acompanhar ao Sindicato. Desde que eu chegara de Lisboa, já observara de perto, frente a frente, dezenas de mineiros, que subiam das escadarias da juventude até os portais da velhice; e todos apresentavam os rostos secos e macilentos, mais uniformes na cor da pele do que se houvessem sido modelados em cera. Se interrompiam a conversa, para escarrar de lado, era minério que escarram, o pó que absorviam lá em baixo e lhes minava os pulmões. Cara tranquilizante, com faces de colorido optimista, dessas que no Verão suam bagos saudáveis, encontrei apenas uma: era de um homem que deixara de ir à mina. Era de um homem que tinha uma perna de pau.
Quando entrei, enfim, no Sindicato, ladeado por aquela espontânea comitiva, que se fora ajuntando ao longo do trajecto, muitos outros mineiros lá me aguardavam. E, senhores duma experiência muito mais vivida do que a minha, não exteriorizaram surpresa alguma ao escutar a notícia de se haver apagado inteiramente a esperança que eu acendera na
véspera - neles e em mim próprio. -Eu já esperava isso... Eu também... Eu também... Eu também... Só o tom das palavras, sombrio e mascado, dava conta das reacções dos espíritos.
Regressei ao hotel já noite caída e o senhor gerente, mal me viu, avançou lesto ao meu encontro, com boca sorridosa e voz servil, como eu ainda não lhe lobrigara nem ouvira: - Já tenho livre um bom quarto para Vossa Excelência.
Ante a mudança de tratamento, tão inesperada, pensei ter-se decidido por uma nova técnica o hábil inglês com quem eu falara. Suprimiam-se na engrenagem os dentes inutilmente irritantes, mantendo -se, porém, o eixo principal. E essa hipótese adensou-se quando eu terminava de jantar e entrou na sala, dirigindo-se a mim, um homem magro e baixo, sem nenhuma alegria de viver no rosto e de passo ligeiramente claudicante, como se também ele houvesse sofrido um acidente na mina.
-Sou o engenheiro português e estou à sua disposição, para o informar sobre o que quiser.
Imediatamente lhe declarei parecer-me infrutuoso terem-lhe dado o incómodo de vir ali depois do que eu dissera ao seu colega britânico, depois disso e de tudo quanto estava a decorrer e era de seu conheci mento, com certeza.
- Pediram-me para vir.
Como a vizinhança de dois ou três hóspedes lo quazes, que ainda comiam na extremidade da mesa, nos impedisse de falar sem nos sentirmos coibidos, fomos para o meu quarto, com as chávenas de café nas mãos, apagada atitude do visitante, o seu ar de A quem resignadamente cumpria uma obrigação, o seu próprio defeito físico, impregnavam-no de modéstia. Mesmo admitindo que viera mentir-me, foi sinceramente que lhe disse ser apenas por cortesia para com ele que eu aceitava um diálogo já nessa altura supérfluo ou quase.
Iniciei as perguntas e pouco depois senti-me incomodado. Ele havia cometido o seu primeiro erro, erro enorme que tanta influência iria desenvolver na nossa confrontação. Em vez de me expor, veramente ou sofismando o estado em que se achava a mina, o que eu não poderia contestar, por falta de visão directa, autorizara-me inocentemente a perguntar-lhe o que bem me aprouvesse. E, à medida que ele ia respondendo, uma crescente sensação de horror me tomava. Eu compreendia, enfim, porque tantos homens de insigne inteligência, mesmo velhos advoga dos há muito afeitos às argúcias e aos interrogatórios nos julgamentos, terminavam confessando, a pessoas verosimilmente menos inteligentes e menos cultas do que eles, aquilo que tanto desejavam calar, se eram, por sua vez, acusados de actividades interditas e submetidos às inquirições policiais.
Eu já havia atentado no carácter tímido do engenheiro português, que por aí se identificava com o meu. Mas tendo-me ele dado o comando da situação, a sua timidez reduzia grandemente a minha e essa supremacia, à custa de outrem, começava a pôr-me de mal comigo mesmo.
Ele ignorava o que eu sabia. Eu sabia pouco, mas o pouco que sabia, o que ele já afirmara e as inferências consequentes, bastavam para lhe lançar interrogações de todo imprevistas, aparentemente sem liames com as respostas já obtidas, que assim mo impunha a própria matéria em exame, a própria tendência dos torneios, com desagradável surpresa minha. Quando ele se dava conta da ligação e se apressava a corrigir ou a ladear o que dissera, era, por vezes, demasiado tarde e desnorteava-me mais ainda.
Olhando aquele homem sentado na minha frente, modesto e melancólico, vivendo obscuramente num refego da província, talvez por carência de tempera mento para os êxitos fáceis que arrecadavam alguns dos seus colegas, eu pensava que se estivesse no lugar dele praticaria os mesmos desacertos, tanto a nós dois sobejava sangue quente e minguava presença de espírito. Cada uma das suas contradições produzia-me, em vez dum sentimento de vitória, um enfado profundo. E toda a pergunta astuciosa que eu aventurava parecia-me uma crueldade para ele e uma indignidade que eu fazia a mim próprio. O nosso colóquio cada vez me repugnava mais. Nem ele nascera para aquela missão, nem eu para inquisidor. Visionei lívidas madrugadas, as impiedades morais, as longas opressões psíquicas, as mútuas mentiras, o imenso cansaço de lutar toda a noite contra a verdade; e finalmente as rendições, que abrem chagas como as brasas e instalam o desejo de morrer.
Pensei que esse homem, que se humilhava a si mesmo, devia sentir-se infeliz, tão infeliz como eu. decerto muito mais ainda. E para quê? Pois que os meus olhos não poderiam confirmar a veracidade da paisagem subterrânea de que ele teimava, através de todas as suas falências, em me oferecer uma cópia verbal, decidi acabar de vez como tormento inútil.
Depois de ele partir, sai também, para desoprimir o espírito ao ar livre, tentando libertar-me do pesadume. Esperava encontrar-me com a Lua. E, por ela ajudado, divagar; divagar, meditar sobre o ocorrido, sonhar talvez um pouco naquela minha última noite de São Domingos. Mas um rebanho de nuvens transumantes encobria-a de quando em quando, furtando-me a sua colaboração.
Marchava pela estrada lentamente, detendo-me aqui e ali, a olhar os luzeiros do céu e as luminárias da aldeia, a sentir aquela noite complexa onde se espraiavam, em ondas ainda cálidas e altas, os sucessos do dia, aquela noite de duas faces, que passava, dentro de mim, da treva para a claridade e da claridade para a treva, muito mais rapidamente do que passam os hemisférios. E quando me voltei, não me recordo porquê, quiçá por um pressentimento brotado do diálogo com o sub-director da empresa, vi um guarda-republicano, contornado pelo luar, na mesma linha do meu destino andarilho. Se me detinha, ele diminuía o seu andamento; se eu avançava, ele regulava pelos meus os seus passos, mantendo-se sempre a igual distância, como um reboque. E não tentava sequer disfarçar-se, pelo que facilmente de preendi ter o inglês, lavando as mãos, transformado-o em meu protector, um São Gabriel de sabre, que rutilaria altaneiro e forte como a espada do arcanjo, se alguém ousasse tocar-me, fosse mesmo só com um dedo. Era como nas constituições dos países civilizados. Eu caminhava oficialmente protegido, mas ai de mim se praticasse acto indesejável, tentar entrar na mina, por exemplo, para conhecer a verdade toda. Então o patrono dos meus movi mentos tornar-se-ia, imediatamente, o carrasco da minha liberdade.
Quando dissera ao engenheiro inglês que eu me reservava o direito de percorrer livremente, de dia e de noite, o território exterior da mina, não podia ainda prever que a vigilância secreta aos meus actos e aos meus passos, se transformaria em vigilância a céu aberto, provocada por mim próprio. E, assim, se alguma vez a boca se me alongou para sorrir naquela terra de tamanha tristeza, deve ter sido nesse mo mento de paradoxo, pois que justamente a nossa. liberdade se perturba e se reduz quando nos sabe mos vigiados por alguém marchando atrás de nós, mesmo que seja para nos socorrer. Foi com esse mal-estar que subi, pela derradeira vez, os degraus do Sindicato, a despedir-me de dois membros da direcção que não haviam comparecido ali de tarde, impedidos pelo seu labor a mina.
Logo que saí, de olhos vagueando nas redondezas, divisei o guarda-republicano, distante e atento. O céu enevoara-se mais, a Lua desaparecera completamente. As onze horas ficavam para trás e às onze e meia começaria o próximo turno. Daqui e dali surgiam luzes errantes na noite já de todo enegrecida. Algumas acercavam-se de mim, tomando o mesmo itinerário, e eu via os mineiros ladearem-me, com o chapéu de cartão na cabeça, a meio do peito a lanterna acesa, o rosto definhado e amortecido o olhar, direitos à mina.
A notícia da última recusa já se propagara na terra pequena, onde a minha figura havia sido rapidamente fixada; e muitos dos passantes abordavam -me, pedindo pormenores ou comentando o sucedido. E antes de volveram à sua rota, pontilhando com lucernas o caminho, eu notava que todos eles levavam somente um pedaço de pão com duas ou três sardinhas, ou um pedaço de pão e algumas azeitonas, ou um pedaço de pão e alguns rabanetes, que mais os salários não lhes permitiam. Era a ementa clássica, diariamente repetida. Era a única alimentação deles durante as longas horas de trabalho nos negros intestinos da terra.
Deixei, por fim, aquele carreiro que dir-se-ia de pirilampos e fui postar-me lá em cima, no planalto do hospital, para os ver entrar na mina. A boca do túnel que lhe dava acesso, de dia a prolongar-se numa semi-obscuridade, estava de noite iluminada, com seu quê de forno aceso aguardando pão para cozê-lo. E a máquina continuava a trabalhar, tão obsessionantemente que semanas após a minha estada ali, quando acordava a horas mortas, ainda me parecia ouvir o seu ruído.
Sobre a pontereca de madeira que sobrepujava a entrada, veio juntar-se ao guarda-republicano que representava a ordem dos fortes, aqueloutro que calcurreara a noite atrás de mim. Eu estava na sombra e de lá ele não me via. Mas sabia onde eu estava e de quando em quando os seus olhos, talvez mesmo sem ele o querer, enviesavam-se na minha direcção.
Não há certamente, no nosso torturado planeta, um só palmo de terra que desconheça o sofrimento humano. Não há, mesmo quando entrançadas florestas ou agressivos rochedos, de milénios imprecisáveis, lhe servem de carapaça e parecem anular toda a hipótese dum lar remoto; não há, porque o homem, para sofrer, não carece de habitar onde 80- fre. Antes daqueles homens que eu adivinhava nas trevas, pelas luzes que levavam agarradas ao peito, muitos outros haviam, sem dúvida alguma, sofrido sobre a terra que eles e eu agora pisávamos. Mas aqueles eu os enxergava directamente. Sentia mais o seu drama, por serem meus contemporâneos e por que viam ainda em mim, apesar de tudo, uma ténue esperança, nessa noite que me parecia arfar como eu próprio.
São Domingos tranformara-se. De todos os seus pontos convergiam para a mina, por diferentes ata lhos, numerosas lanternas, filas de lanternas, a sugerirem cortejos rituais de candeias avançando para o templo bárbaro onde se realizaria, com afiadas là- minas e copioso sangue, a cerimónia nocturna dos sacrifícios. Mais resplandecentes hora, mais espectaculares pelos cânticos e também mais dramáticas pelos doentes que nelas se expõem, as procissões das velas em Fátima ou em Lourdes tinham menor singularidade e menos ainda de mistério.
Duzentos, trezentos, por fim quatrocentos homens vieram reunir-se junto da bocarra do túnel, muda mente como se fossem ser leiloados. Um vago fulgor pairava sobre as suas cabeças, pela junção dos pequenos jactos luminosos que lhes haviam guiado os passos até ali e lhes guiariam também os braços dali em diante, nos rudes trabalhos a que se iam submeter.
As onze e meia, como sempre, uma sineta deu a ordem e eles mergulharam na terra, à semelhança desses outros que se iam imolar em volta do ano morto, nos túmulos reais da velha Suméria. Um, que chegou atrasado, correu sozinho dentro da goela enorme, com a luz a salientar-lhe os movimentos, e desapareceu também.
O boqueirão ficou deserto e hiante. O monstro subterrâneo, a quem ele acabava de fornecer a ceia, ia começar a digestão. S6 se ouvia o ruído da má- quina a perturbar a noite, a romper aquela menti rosa aparência de inteira paz, sono calmo e nenhuma preocupação em toda a área de São Domingos.
Na manhã seguinte, quando desemboquei no largo de onde partia a camioneta, eram mulheres e crianças que me aguardavam ali. E as flores que me ofereceram dir-se-iam tão acanhadas e humildes como elas próprias. Ao longo de milhares de anos, a sociedade dos fortes recusara à maioria dos homens quase tudo quanto lhes competia também, mas não conseguira suprimir no coração humano os cálidos momentos de ternura, nem pela força, nem pela mi séria em que os mantinha. E durante a viagem, sempre que os meus olhos as encontravam, as flores lembravam-me tanto a procedência, que delas próprias me parecia exalarem-se velhos clamores de justiça.
Cheguei a Lisboa num sábado. E, derrotando a fadiga que trazia, escrevi logo a primeira crónica. Seria publicada no dia seguinte, disse-me João Pereira da Rosa, com o mesmo tom de interesse de quando eu partira. Mas na manhã de domingo, de balde a procurei em todas as páginas do jornal.
Não quis tomar logo por definitiva a ideia gela- dora que imediatamente me sobreveio. A minha própria intuição me sussurrava que a negra tesoura não encontraria nesse texto, mesmo inchando-o com uma lupa, pano algum para cortar. Haveria, pois, outro obstáculo alheio à técnica habitual. E querendo ainda atribuí-lo aos imprevistos que tantas vezes assaltam e emperram os actos humanos, admiti que a publicação da crónica se daria na segunda-feira.
Realmente, conhecendo os limites já existentes, embora eles tendessem sempre a dilatar-se, como os dos rios nos dias de chuva intensa, eu tinha vigiado as palavras da minha escrita ainda mais rigorosa mente decerto do que haviam sido os meus passos e os meus gestos na Mina de São Domingos. Passara duas esticadas horas a torturar-me para redigir essa crónica, que eu caboucaria e remataria em me nos de uma, se pudesse entregar-me livremente aos meus sentimentos de justiça e de solidariedade com os mineiros. A torturar-me, porque o malefício das muralhas postas à liberdade de pensamento não pro vêm apenas dos censores de carne e osso, sentados às suas mesas, com os lápis azuis na mão, a desbas tarem as ideias de outrem segundo as directrizes que receberam, segundo os seus temperamentos, segundo O9 seu próprios credos e quase sempre temendo ser repreendidos por liberalidade ou descuido, que eles, paradoxalmente, também não são livres. Mas de to dos esses fabricantes de perniciosos silêncios, o mais nocivo de todos, como há já muitos anos enunciei, não é o censor real, é a sua consequência, o censor abstracto que se instala no nosso cérebro e de lá nos comanda impiedosamente. E imponderável e tem um peso enorme. Falta-lhe volume e ocupa o espaço todo. Não possui voz sonora e fala-nos constante mente: «Vê lá, isso assim não passa. Corta essa frase, essoutra também, se não cortam-nas eles e talvez, quem sabe?, por causa de duas ou três palavras, por causa de dois ou três pequenos ramos, cortam a árvore inteira. Não vale a pena escreveres o que estás a pensar. Parece-te literariamente novo e socialmente justo? Custa-te a renunciar? Compreendo, perfeitamente, compreendo, mas...).
Este espectro insinua-se em tudo, suprime todas as espontaneidades da criação intelectual, esventra cada palavra, para verificar se tem sumo diferente do que aparenta, como se esventra uma noz, para atestar se o âmago está seco ou se se pode aproveitar; propõe artifícios sinuosos, manipulações verbais, a discreta adulteração da verdade e a falsificação da própria personalidade de quem se vê forçado a ouvir-lhe os conselhos prudentes. Parece ser nosso protector e está a destruir-nos pouco a pouco. Está a obscurecer, a diminuir, a negar ao futuro, satanicamente, através de todos nós, o espírito da pátria comum
Pode-se contar, nos registos dos funcionários do Estado, o número exacto dos censores reais; o número dos seus fantasmas esse não tem conta. Sabe mos apenas que acompanham os escritores e os jornalistas, nas bancas de trabalho, dia e noite, até pelas madrugadas afora, e tão ubíquos e persistentes que muitas vezes tive a sensação de se encontrarem na própria lâmpada que alumiava os movimentos da minha pena, sobretudo quando expressava sentimentos de justiça para todos os homens.
Pela atenta crivação que realizara, eu admitia ainda, na segunda-feira, ao abrir «O Século», que a crónica estaria lá. Não estava.
De tarde, fui encontrar Pereira da Rosa no seu gabinete, muito excitado:
- Esta manhã, telefonei ao chefe do Governo, para protestar, mas ele ainda não havia chegado. Vamos a ver se já chegou.
Ergueu o auscultador e pediu à telefonista a ligação. - inacreditável! Li duas vezes a sua crónica e nada vi que justificasse o corte. Presidia então ao Ministério um general e dali pouco a Sua voz soou no telefone.
Os directores dos jornais tinham ainda nesse tempo, ou acreditavam ter, alguma da larga influência que exerciam sobre os governos democráticos do regime anterior; e Pereira da Rosa expôs a causa do seu telefonema com grande desembaraço e energia
Ouvi-o, a certa altura, perguntar: - Que diz Vossa Excelência? O director da mina veio a Lisboa ? Falou ao embaixador inglês?
- E o que respondeu o ministro dos Estrangeiros do embaixador?
Vossa Excelência não leu a crónica? Pois eu lhe digo que se trata de mais de dois mil portugueses!
- Não, senhor presidente! Nada disto aconteceria se não houvesse censura. Qual era o embaixador, fosse qual fosse a importância do seu país, que ousaria ir ao «Foreign Office» pedir que o governo inglês proibisse os jornais da Inglaterra de se ocuparem dum caso semelhante a este? A este ou a qualquer outro.
-Pelo menos, senhor presidente, devia-se fazer um inquérito.
Logo que terminou o diálogo, Pereira da Rosa quedou-se um instante pensativo. Depois voltou-se para mim:
-Disse-me que sim, que ia mandar fazer um inquérito, que já tinha pensado nisso.
Começou a reproduzir as outras respostas que o general lhe dera. Mas era inútil esbanjar palavras comigo. Eu já havia compreendido tudo.