Enchente diluvial-mértola 1876

Ano: 
1876
Descrição: 

ENCHENTE DILUVIAL-MÉRTOLA 1876
MÉRTOLA 10-12-1876

Com o coração transido da mais pungente magoa vou dar-lhe a Iamentavel noticia dos estragos causados pela enchente do Guadiana, no mez de Dezembro de 1876, que será para Mértola de sensivel e perpetua memoria.
Em 1823 houvera n'este rio a cheia maior de que havia recordação n'este e no passado seculo, que causou alguns estragos, mas não tão sensiveis que os prejudicados não tornassem a reedificar os predios demolidos por essa enchente.
Em 1856 e 1860 houve tambem desmarcadas cheias, que causaram damno mas não se aprosimára á de 1823.
Os habitantes de Mertola viviam desapercebidos, como quem se julga incolume d`uma inummdação, pela immensa altura de suas habitações e grande distancia do leito natural do rio.
Os moradores da margem esquerda, que tambem foram sempre denominados habitantes de Mértola—esses residiam em mais perigo, mas a experiencia de muitos secules lhes dizia que nunca seriam victimas d' uma innundação diluvial,como esta, mas, quando descuidosos e entregues á grande lida da vida humana, eis que chega o memoravel dia 5 de dezembro de 1876—o rio começa em desmedido crescente, e quando amanheceu o dia 6 já não se sabia se existiam casas na margem esquerda! Era um quadro compungente e aterrador.
Horas depois, quando já tinha subjugado aquelles habitantes, volta-se para a margem direita, enfurecido, e transpôr as altas e soberbas muralhas da villa foi obra d'um momento.

No dia 6 para 7 entrou na praça, n`uma elevação, quiçá de 30 metros do nivel ordinario do rio, invadiu as casas da câmara, e o tribunal das audiencias; innundou todos os estabelecimentos da rua do Muro, o sitio mais commercial de Mértola ; entrou nas pharmacias, aonde fez destroços; entrou na egreja Misericordia e levantou o pavimento de solho; fez rombos nas muralhas; destruio a ermida de S. Sebastião e fez d'ella um montão de pedras; da parte d'Oeiras deixou em ruinas armazens e estalagens; d' uma cérca d'oliveiras não deixou uma só—tudo levou pela raiz. E, n'este immenso labyrintho, de salvar o que se podia, tudo era confusão e terror.
Pelas duas horas da madrugada do dia 8 parou em seu crescente devastador, e começou, em lenta decadencia, mas tudo que se vae descubrindo ao sair d`agua são completas ruinas em montões de pedras. De 64 predios que havia, n'aquella parte de Mértola, apenas 3 se vêem de pé. Mete horror olhar para aquella logar, outr'ora a mais linda vivenda d'esta povoação, vêl-a sem vestigios do que fora 3 dias antes da sua fatalidade. havia ali duas estalagens como duas hospedarias, alguns predios altos, muitos e grandes armazens bem construidos, tudo ficou raso. Era imponente o espectaculo, e mais parecia o cordeiro que o hidrophobo se torna leão do que o manso e pacifico Guadiana, da vespera; mystérios inexcrutaveis da natureza.
Não é finalmente a minha humilde penna que tem a competencia para descrever com vivas côres a triste scena porque acabamos de passar, mas sào tristes verdades, que não caressem de flõres para se patentearem—mesmo porque a vista faz fé, como diz o antigo proverbio.
Muitas familias, pobres, ficaram desgraçadas perdendo, não só o moradio, unica riqueza que possuiam, mas tambem mobilia, que não puderam salvar. Calcula-se em mais de dois contos de reis o sal armazenado, que foi presa das aguas, e em mais de 40 contos os destroços havidos n'esta villa e seus suburbios.
Felizmente, no meio de tantos infortunios, não ha victimas a lamentar. Mas, se ha deveres humanitarios, que se compadeçam com as desgraças dos povos nas horas da adversidade, deveria o governo de sua magestade, por esta vez, lembrar-se das infelizes victimas desta catastrophe com um subsidio, visto que muitos d'elles são unicamente marítimos e pescadores, sem outro modo de vida. Continuaremos, se novas occorrencias apparecerem, de que Deus nos defenda.