ENCHENTE-1860
CORRESPONDENCIAS
Sr. Redactor
A noite e dia de Natal de 1860 será de perpetua memoria para os habitantes de Mértola, maxime para os residentes álem do rio. Essa noite grande e festival, que o mundo christão recorda e solemnisa, desde o pastor até ao Pontifece, foi de cuidados, de choros, e de lamentos para aquelles habitantes.
No dia 21, de manhã conheceu-se crescente no rio, e junto ao meio dia começou o vasante. Proximo ao occaso do sol appáreceu vendaval e a athmosphera carregada denotando abundante chuva, que começou logo a cair. Ao crepusculo já se divisava nova enchente, porem ninguem se prevenia contra uma inundação prepinqua, cuja meta só havia sido tocada em 1823, sem outro exemplo, quiçá, em todos os seculos de que ha memoria.
Descuidada, assim, a povoação, sem providenciarem, a pesar de cuidadosa vigilancia, foram rapida e desmarcadamente assaltados por um diluvio d'agua que inundou a povoação a ponto de navegarem lanchas pelas ruas e por cima dos telhados! Muitos predios desabáram, e bastantes moveis e viveres foram presa da agua, por não haver braços que tudo podessem salvar em acto tão repentino, e noturno. Os infelizes habitantes bradaram á villa por soccorro, mas infelizmente todos os barcos de maior lote se achavam auzentes e as lanchas,temiam o expor-se á passagem do soberbo e caudaloso rio, em noite tão tenebrosa e ameaçadora; que ainda de dia merecia respeito.
Immensas habitações d'um e outro lado, moinhos e outros muitos predios, tudo fica immerso na hora em que escrevo, e por desgraça continuará por que o tempo procede. Quem conhece o elevado terreno em que está assentada a povoação ultra rio, mesmo de longe poderá apreciar a terrível scena por que se tem passado. Imagine-se pois, o triste quadro em que muitas familias se verão de braços cruzados presenciando a destruição de seus moveis e habitações! Grandes são os prejuizos causados em Mértola que valem contos de reis; e não menos o serão por outras partes, de que mais tarde a imprensa o dirá. Aqui veio parar e existe uma barca que se diz ser a do vao de D. Izabel Concelho de Serpa. Tem passado muitos centos de cabeças de gado lanigero afogados. Muitos cortiços que dizem ser colmeias. Muitos sacos cheios, que se julga ser farinha. Muitas madeiras etc. etc. Tambem ha quem visse passar uma ou duas creaturas humanas afogadas! Felizmente, de Mértola, não á a lamentar perda de vidas, que não é pouca fortuna em tão critica situação. Do Pomarão tambem são desfavoraveis as noticias. Diz-se que vale muitos contos de reis as perdas ali cauzadas por esta enchente. Grande parte da terraplanagem do caminho de ferro americano ficou destruido; madeira de grande valor, muito material para obra; armazens cheios de mantimentos para gente e animaes, tudo foi presa da agua. Diz-se que nem dinheiro e papeis poderam salvar! O engenheiro inglez, que dirige os trabalhos da via americana, e que habitava em logar bem elevado foi salvo por uma lancha que o recebeu já de cima do telhado do predio, dando (dizem) ao seu salvador algumas libras. He a mais notavel cheia dos nossos tempos. Todos observam contristados a invasora torrente; admiram a instabilidade das couzas do mundo, e contemplavam attentos os phenomenos a que está sugeito tudo que existe debaixo da abobada eterna da Natureza!
Mértola 26 de Dezembro de 1860
José Marcello de Mendonça.