As minas de S. Domingos "requiem" inútil para dois mil mineiros em 1969

Ano: 
1969
Editor: 
Jornal O Século
Descrição: 

As minas de S. Domingos "requiem" inútil para dois mil mineiros

São Domingos, quando nova 
Nunca te chamaram velha. 
Do concelho és a maior 
Sem ser vila nem aldeia

Sem ser vila nem aldeia 
Do passado és ilusão. 
Estás velha, foste nova 
Hoje estás na solidão

(De uma moda do grupo coral de Mértola).

A mina de São Domingos é lenda negra no Baixo Alentejo. Tão negra como o boqueirão da entrada que os gasómetros já não alumiam, fala-se dela em Mértola como de um sonho desfeito, sonho que foi, pesadelo nos tempos duros de trabalho, mas deu vida a milhares de braços e pão a milhares de bocas. Dos 1800 mineiros que alimentavam, com o seu trabalho, uma aldeia de 8000 pessoas só restam sete para arrancar das galerias noturnas, em silêncio, dolentemente, peças ferrugentas de máquinas partidas.
Ruas longas paradas como a frustração dos reformados. Casas desfeitas, que ninguém habita; portas, a bater no desamparo, porque não há gente para entrar.
Braços cruzados, em grupos, à porta das tabernas: desalento, vozes baixas que mal se ouvem, casas paradas de esperança morta, Como um asilo de velhos ou clínica de paralisia cerebral.
E há sombras, sombras frescas de ramos novos, que a Primavera trouxe às ideias nas latadas, ao pinho manso, ao choupo, às oliveiras, Primavera irrisória que não aquece as almas nem revigora o sangue para os trabalhos do Verão.
A maior parte dos dias, estou para aqui de braços cruzados, diz Francisco Guerreiro, barbeiro de São Domingos- «Já não ganho para fazer a barba». A ironia é o recurso de quem não tem outra desforra.
- Isto parou há dois anos - dizia um antigo mineiro. Primeiro, levaram cinco meses sem pagar, Cem escudos num mês, cinquenta noutro e a promessa de pagarem tudo no mês seguinte, A mim devem-me 5240$00. Era encarregado de serviço. Eu não sou nenhum velho, não senhor: tenho 48 anos, mas reformaram-me por invalidez. Agora, vivo da reforma:
E ainda está com muita sorte interrompeu a Sra. D. Maria Antónia eu trabalhei 25 anos, na limpeza dos doentes. Jesus... O que eu passei! Agora, se não fosse a reforma de 220$00 morria de fome com certeza. O grupo vai crescendo à nossa volta. Homens de poucas falas. Respostas a saca-rolhas. Desconfiança cheia de amarguras (ninguém se lembra da gente). Frieza que vai quebrando pouco a pouco, quando os primeiros informam que somos homens dos jornais.
-O Século. Os senhores vieram cá há dois anos. Lemos tudo. A gente aqui lê o Seculos todo, porque não temos outra coisa para fazer, Vendem-se mais de quarenta. Quem sabe disto é o Sr. José Guita.
Ele estava a chegar neste momento. É correspondente do nosso jornal e funcionário do Sindicato.
-Há três anos, ainda havia 1200 mineiros sindicalizados, Chegamos a ter 1600. Agora esta miséria que o senhor vê.

Pararam tudo, porque o minério já não dava rendimento, -Isso era o que eles diziam sr Zé,  refilava um homem de 60 anos. Então por que inundaram a mina? Ainda há lá minério para quarenta anos de trabalho. Até faz dó: ligarem a água para as galerias, a estragar tudo! maldade! E quando eles partiram as máquinas?, Cada martelada nas máquinas era uma dor que eu sentia cá dentro. Se todos fossem da minha opinião.. ninguém fazia mal às máquinas. Nem com um dedo!... Ai, se eu pudesse!...

Mas o velho mineiro acalmou -se («Tinha de ser, é o destino que não quer nada com a gente »). E acabou por concordar com alguém que segreda baixinho: "Aquilo foi falta de cabeça".
- Os ingleses, enquanto cá estiveram, eram isto e mais aquilo, mas nunca fizeram uma coisa destas. Loucura. Loucura é que foi...

A nosso lado, o sr. Manuel Zarcos, sessenta e dois anos cansados, continua sem falar, Desafiaram-no.
- Há 49 anos que trabalho na Cooperativa. Chegamos a ter mais de 2000 sócios e cinco mil contos de movimento por ano, com lucros de mais de 5 por cento. Agora ainda estão inscritos mil sócios, mas a maior parte já se foi embora. O ano passado apenas movimentámos 900 contos e tivemos um prejuízo de 130 contos. Agora só temos tido prejuízos, Se não fosse o fundo de reserva, estávamos bonitos...

Já houve ali um comércio activo, Mas agora a loja grande está vazia. Prateleiras desamparadas. O dono, à porta, sem fregueses. Não há dinheiro, senão no dia que se  pagam as pensões da previdência ou quando algum soldado manda de África alguns escudos à mãe.

SEM SER VILA NEM ALDEIA DO PASSADO ÉS ILUSÃO...

Também houve cafés e restaurantes, casas de pasto e de dormidas. Um povo laborioso descansava à noite e nos domingos e tinha as suas horas de convívio e de alegria. A banda tocava no largo, em frente da igreja e chegou a ter 35 instrumentos. A equipa de futebol que disputava o Campeonato Nacional da II Divisão era das melhores do distrito. Nos arraiais de Serpa e Almodôvar, nos bailes e festas de Mértola e arredores e até nas feiras de Beja nunca faltava o dinheiro das minas nem o despique dos cantares. E tudo o vento levou...

Figura típica de São Domingos é o Sr. Francisco Guerreiro, de longas barbas de protesto, irónico e palrador. É o barbeiro da terra. Em tempos explorava duas lojas bem afreguesadas. onde agora as moscas brincam a seu bel-prazer. Descansa pacatamente dos anos seguidos em que não viu férias e cortava barbas pelo serão adentro e não tinha mãos a medir. Engordou. Mas antes não queria ter tempo para comer, como há 3 anos quando tinha 124 fregueses de assinatura que pagavam 10 escudos por mês para fazerem a barba as vezes que entendessem. Agora tem apenas 6 assinaturas.

Lisboa, Algarve, França... (Fugidos... Também o que estavam aqui a fazer? Todos se queixavam de que as casas não prestavam: havia família com dez filhos a viver num quarto. Agora há largueza: há para  aí menino que tem uma casa para cada dia da semana. A maior parte estão desertas, mas as portas já não fecham. Por 25$00 de renda tem-se uma casa, que é um primor...

ESTÁS VELHA FOSTE NOVA HOJE ESTÁS NA SOLIDÃO

E aqui terminava a nossa reportagem. Quisemos trazer recordações, Talvez um gasómetro de latão, dos antigos que os mineiros levavam para a mina. Impossível. Encontramos muitos, de vários tamanhos e feitios, mas ninguém teve coragem de os vender. São recordações do trabalho, dos bons tempos de outrora, e alguns ainda se utilizam de noite nas casas, porque em São Domingos não há luz eléctrica.

De regresso a Mértola, ainda pudemos recolher mais pormenores. No Município, ouvimos falar o presidente da Câmara acerca dos projectos de electrificação para São Domingos.
Também soubemos de soluções que foram tentadas para empregar alguns mineiros. Tudo faliu: a fábrica de mármores, a fábrica de plásticos. Ultimamente, houve a ideia de uma fábrica de roupas-feitas, Impossível: a estatística provou que apenas 1% da actual população masculina tinha idade compreendida entre os 18 e os 45 anos,

Alentejo, terra deserta e ressequida, onde a lavoura agoniza, onde a indústria faltou, Terra frustrada e desiludida, onde o amor se canta em tom   de «requiem».
Campos longos e ricos que ainda um dia podem ser o «celeiro da Nação».
Se os seus filhos acreditarem na terra; se os de fora o descobrirem na sua riqueza imensa e não apenas na arte e na paisagem e nas estradas belas que levam para o Algarve.

Por AVELINO RODRIGUES
Jornal O Século21/05/1969