Os que trabalham nas trevas: A Mina de São Domingos

Ano: 
1923
Autor: 
Sofia Gallini
Editor: 
Jornal A Batalha
Descrição: 

OS QUE TRABALHAM NAS TREVAS-A MINA DE SÃO DOMINGOS

Há anos, estando no Algarve, assaltou-me o desejo veemente de seguir pelo rio Guadiana até ao Pomarão e visitar a mina de São Domingos.
De bordo do vapor que me conduziu, gozei deliciosas e imprevistas paisagens. O rio é tão difícil de navegar que os vapores vão sempre acompanhados por um piloto. E compreende-se. Ele coleia em zig-zags, torcidos e caprichosos; as margens, ora são colinas sombreadas de figueiras e amendoeiras, ora surgem em ásperos tratos de terreno ermo e triste, ora se erguem em rochas estratificadas, dando a impressão de milhões de livros sobrepostos.
Ao chegar a Pomarão, subi para uma vagoneta de transportar minério, que me conduziu a mina de São Domingos. Alcançada licença para descer às galerias, tive, antes de começar essa viagem nas trevas, de vestir um grande casaco de lã e enterrar na cabeça uma grossa boina para assim sair incólume dos ácidos que continuamente escorrem do tecto e das paredes húmidas e que queimam como fogo, três mineiros serviram-me de guia. Não obstante a poeira preta que lhes cobria a cara e o fato, apercebiam-se-lhes os olhos inflamados e a cor má e doente. Todos nós levamos candis, e foi com a sua pálida e indecisa luz que nos alumiámos.
Começámos a descer. A escada da mina é na própria colina; atravessam-na traves de madeira que sustém a terra e formam as escadas. Ao principio, desce-se por uma galeria estreita que vai pouco e pouco alargando e quando os olhos se habituam à baça claridade, distinguem-se charcos de água preta e oleosa formados por continuas infiltrações.
Esta escada, desigual a húmida, é muitas vezes substituída por veredas em declives rápidos, escorregadios e perigosos. Se se encontra uma galeria explorada e esgotada, vereda e escada. estão interrompidas.
As galerias são altas, em arcos sustidos de longe em longe por largos entravamentos de madeira, ouvem-se grandes ruídos como o de arrastar correntes. Passam a todos os instantes vagonetas amontoadas de pedras escuras do minério, e dói o ver as crianças que as acompanham. A espaços há uma espécie de cavidades abertas na rocha a que os mineiros chamam refúgios, e onde se metem quando passam os carros, o que muitas vezes tive de fazer. Após um longo e fatigante percurso, chegámos a uma espécie de salão enorme, lúgubre, negro.
Parei; os olhos habituados à escuridão viram como que um labirinto de galerias que para ali abrem as suas bocas. E a esse lugar que vem dar o novelo dos corredores, das veredas que lá dentro se cruzam e entrecruzam, cortam e recortam, se encontram e se embatem; é ali que se abrem os poços onde o braço humano arranca blocos de pedra com esforço de angústia e dor.
Tenho ainda nos ouvidos o som cavo da picareta; ouço ainda o arquejar convulso de peitos humanos; escuto a espécie de rouquido com que eles acompanham a pancada do ferro na rocha!...
À luz dos candis essas figuras denegridas, animais com figuras humanas, de uma lividez cadavérica, os olhos injectados de sangue e as pálpebras inflamadas, dão a atroz impressão que ali é que é o verdadeiro inferno onde penam condenados.
Os mineiros que me acompanhavam, vendo a minha emoção, propuseram-me qualquer coisa de novo. Segui-os. Introduziram-me numa escuríssima galaria abandonada. Apagaram as luzes. Ficámos nas mais densas trevas.

Então, de repente, acenderam archotes e em um instante a galeria iluminou-se dos mais estranhos e fantásticos reflexos. As estalactites e as estalagmites do chão, paredes e tecto da galeria, pareceram arder num brasido de fogos multicolores!
Era um incêndio de todos os matizes, com efeitos de luz, feéricos, únicos! Apagaram-se os archotes; e a escuridão caiu sobre mim implacavelmente.
Penetrou-me a humidade e a angústia; e, sem nada mais querer ver nem observar, pedi com insistência para subir à terra onde se vê o sol.
A ascensão foi difícil. Trazia no coração a melancolia daquelas trevas doloridas. Tropeçando aqui e além cheguei finalmente à boca da mina.
Sentei-me sobre a terra, aspirei a longos haustos o ar que me pareceu perfumado e florido; ergui os olhos, consolando-os de luz, à vastidão azul dos céus.
E um sentimento de infinita piedade me invadiu a alma, ao pensar que sob os meus pés se desenrolava o trágico drama de escravidão que ali prendia tantos desgraçados vestidos de sombra, amortalhados no seio da terra.
Desde então eu, que conheço as angústias da existência, as suas misérias e cobardias, a infâmia e a perversão humanas, que tenho entrado em muito lar sem pão, que assisti à morte a dentro dos hospitais, que sofri durante uma noite e um dia angústias que julguei serem as maiores numa enfermaria de indigentes; quando penso nos dias e noites da mina de São Domingos, na labuta suada e sofredora de centenas de criaturas, que vivem na sombra impiedosa, tiritando de frio, para no seio da terra cavar a rocha dura onde está incrustado o metal e onde lívidas crianças atravessam uma existência de tortura, chego a julgar-me quási feliz, não obstante as duras privações atravessadas, que aliás são as de todos os que trabalham sobre a negra apreensão do dia seguinte.
SOFIA GALLINI

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