UM POUCO DE HISTÓRIA das comunicações marítimas-fluviais entre Mértola e Lisboa e a insubordinação no vapor "Algarve", o último a fazer a carreira
por ÁLVARO MAGNO GUERREIRO
O HISTÓRICO castelo da velha Myrtilis, mal se distingue do seu fundo de montes, graças a uns hepáticos reflexos de minguada lua, que se esconde receosa do próximo alvorecer. Pelo desnível abrupto do burgo ao Guadiana, sombras humanas, deslizando aqui, firmando-se ali, correm para a embarcação escura e silenciosa que a corrente prolongou com a margem. Não são árabes correndo em ar de guerra. Não se distinguem gilabas nem albornoses. Rodaram os séculos. São simplesmente pacíficos mertolinos, envoltos em características mantas alentejanas, bem rebuçados nelas, para defender-se do norte, que corta como navalha sevilhana! Saltam os passageiros no barco, arrumam-se as mulheres no porão, os homens no convés.
Trazem alforges com géneros alimentícios: cestos com ovos, latas oxidadas pelos anos, contendo ca- vacas e suspiros, pão de ló, «costas bem passadinhas, condimentadas com anis. Já a viagem decorre. Já se passaram os vaus, e rio abaixo o barco se aproxima do feíssimo Pomarão com seus cais e montes de minério e de carvão, guindastes, vagonetas, um pêle-mêles de ferro. Ali a dois passos, a entrada da ribeira de Chança, encantadora no seu serpentear murmurante, cristalina mostrando os seixos do fundo, triste somente, por separar espanhóis de portugueses. O norte continua soprando rijo, fazendo que o barco vença a força da enchente. A navegação é fácil, o rio é largo e o sol já espreita, tangente de oiro, sobre os montes de Espanha. Aproxima-se a curva da livrarias, impressionante biblioteca de enormes graniticos volumes, que não inserem a palavra fim», porque o Tempo, o grande historiador, jamais pára de escrever. Ouve-se um apito, entrecortado pelas ressonâncias dos montes que apertam o rio sobre águas e ares. E o vapor de Mértola, o Gomes 2., que tivera de esperar lá em cima, a subida da maré para vencer os vaus, com o poder das suas rodas, vem ultrapassando o barco do rio». Este afasta-se e o vapor como uma azenha móvel, numa estrada de espuma branca, lá vai direito a Vila Real de Santo António, onde chegará duas horas e meia depois. E o barco do rio com seus passageiros? Continua marginando todas as curvas, evitando a maior corrente. Roça pelos juncais, passa sob abóbadas de árvores cujos ramos se miram no rio; romanzeiras, pereiras, álamos de folhas prateadas, canaviais onde àquela hora matinal, os rouxinóis soltam. os seus últimos madrigais. Ouve-se o cuco aqui e além, e já nos campos se moireja. Vão surgindo os postos da Guarda Fiscal; os soldados envoltos nos seus capotes, estremunhados, cansados de varar, a noite inteira, a escuridão do rio, com seu olho fiscal».
A garrafa de aguardente
auxiliar da viagem pelo rio
O frio continua a cortar a pele, e a bordo do barco do rio» a garrafa de aguardente faz, de boca em boca, novo périplo. Passam horas e já tarde bem avançada, passado o posto da Rocha, o Guadiana abre os seus braços, suspensa no esquerdo Aiamonte, no direito Vila Real de Santo António, e, lá ao fundo, o Atlântico a confundir-se com o céu. E a que vêm estes passageiros do “Gomes 2º e do barco do rio”? Fazer vendas de suas mercancias, outros fazer suas compras e alguns deles esperar o Gomes VI, que chega no dia seguinte de Lisboa, e que os levará a Tavira, Faro, Lagos, Portimão, ou à capital do País. A Lisboa sim, porque então a estrada de Mértola a Beja, só para percorrer-se a cavalo. O Gomes VI» era a solução para a viagem a Lisboa dos habitantes de Mértola para baixo. Vila Real de Santo António- -Lisboa fazia-se por mar. Aqui vinham tomar o vapor para Lisboa, comerciantes, estudantes dos cursos superiores, de Tavira e proximidades, numa curva pelo Norte, que vinha dar novamente ao Guadiana. Isto sucedia porque a política bairrista de Faro continuava a manter na sua cidade o término da linha férrea do Algarve. Esta zona Sul, um dos Algarves», continuava votada ao esquecimento.
O alvoroço provocado pelo navio da carreira de Lisboa
Em cada dia 5 e 18 de cada mês, a população de Vila Real de Santo António ouvia... não um apito mas uma voz amiga que alegremente dizia: Al está o Gomes VI, aí está o capitão Rocha! Já temos sabão azul e rosa e canastras de