Em pleno ano de 1952, a jornalista Manuela de Azevedo embarcou numa viagem singular que ligaria, não apenas geografias, mas também culturas, modos de vida e sentimentos profundamente enraizados no sul da Península Ibérica. O resultado é uma reportagem de rara sensibilidade e valor histórico, agora disponível no portal do Centro de Estudos da Mina de São Domingos.
Em “Seis Horas de Barco”, descemos com a autora o Guadiana, desde Mértola até Vila Real de Santo António, ao longo de 27 milhas navegáveis, por entre paisagens de beleza agreste, vidas humildes e histórias esquecidas pelo tempo. É uma crónica que nos envolve pelo detalhe poético com que capta o espírito das gentes e o carácter das margens do rio — ora donzelas de oliveiras e trigais, ora serranias ásperas, xistosas e quase desertas.
Este artigo é mais do que uma viagem fluvial: é um retrato íntimo de dois povos irmãos, portugueses e espanhóis, divididos por uma linha de água que mais une do que separa. Nas suas margens, vivem camponeses, contrabandistas, guardas-fiscais e carabineiros, todos personagens reais de uma vida dura, mas também feita de gestos de solidariedade, partilhas espontâneas e convivência natural entre fronteiras.
Azevedo transporta-nos numa embarcação simples, um “gasolina”, onde viajavam passageiros e mercadorias. Com um olhar apurado, a jornalista descreve não só a realidade socioeconómica da região, mas também a riqueza natural do rio, as tensões entre modernidade e tradição, e os primeiros sinais de transformação no transporte e nos hábitos da população.
O texto destaca ainda locais emblemáticos como Pomarão, Alcoutim e Puerto de La Laja, num percurso que parece tanto físico como simbólico — um convite à contemplação, à memória e ao entendimento entre povos vizinhos.
Publicada originalmente numa época em que poucos se aventuravam por reportagens desta natureza, a viagem de Manuela de Azevedo revela-se, hoje, um documento de importância cultural e etnográfica inestimável. Relembra-nos de um tempo em que o rio era estrada, sustento e fronteira viva — e de como o progresso, aos poucos, foi silenciando os seus segredos.
Convidamo-lo(a) a mergulhar nesta leitura emocionante, onde o Guadiana é o verdadeiro protagonista, e cada curva do rio nos conta uma história que vale a pena redescobrir.

