Crónica da Ordem Pública (1861-1932)

Ano: 
1984
Autor: 
Paulo Guimarães
Editor: 
Sindicato dos Trabalhadores Mineiros da Indústria do Sul
Descrição: 

"Foi esta mina de São Domingos achada por Nicolau Biava, súbdito espanhol que era, no ano de mil oitocentos e cinquenta e oito do Nascimento de Nosso Senhor, & logo a cedeu em regime de concessão a uma empresa de nome La Sabina, registada na Andaluzia. Depois a arrendou o súbdito inglês James Mason, fazendo sociedade com seu cunhado Francis Barry, nomeando-se a dita empresa Mason and Barry Ltd. A este tempo era o lugar de São Domingos terra deserta, razão porque se teve de fazer tudo de raiz, moradas de casas, ruas, igreja, hospital, correio e tudo o mais necessário ao viver dela, o que foi de posse e construção dos ingleses da dita empresa, não havendo aí poder da Câmara do concelho, nem d'El-Rei nem depois da República, mandando nela como senhor absoluto o supradito inglês Mason, o qual aí foi morador em grande casario, dando-lhe as gentes o nome de Palácio, porque palácio era, se bem que não d'El-Rei mas deste Mason que teve grande poderio e muitos cabedais, e bens de raiz sem conto, chegando a ser Comendador duma Ordem e Barão. Estava a mina dividida em quatro departamentos, a saber: o departamento da contramina, o departamento da Oficina, o departamento da Achada do Gamo, e o departamento do serviço geral. Trabalhavam no departamento da contramina os safreiros, os quais enchiam de minério as vagonetas, os barreneiros que tiravam pedra do filão com massetas, & os entivadores que madeireiros eram, porquanto neste departamento amanhavam os poços metendo-lhes reforços de madeira. Não havia nestes ofícios categorias de primeira, segunda ou terceira, como houve depois, nem homem certo para os fazer por toda a vida, havendo muito mineiro que sendo entivador foi depois barreneiro, ou que trabalhando neste departamento foi depois para outro, à mercê das vontades da empresa, ganhando conforme o trabalho que fazia em cada tempo. De entre estes ofícios eram os barreneiros que mais ganhavam, porém, veio este ofício a acabar no nosso tempo, com o aparecimento de máquinas de perfuração, ficando agora o ofício de maquinista. Faziam os operários dois relevos no tempo em que se trabalhava de sol a sol; porém, por lei da República das oito horas de trabalho ao dia, se fez depois três relevos em cada dia de vinte e quatro horas. Trabalhava nesta contramina até ao piso cento e vinte, o gado muar, o qual puxava vagonetas de minério quase nunca vendo o sol em vida, porém, só em terra chã labutavam, sendo o minério puxado nas rampas por guinchos e turbinas, as quais eram alimentadas por um compressor que é máquina tamanha que mais parece ter sido feita para gigantes. Do dito piso cento e vinte até à máxima fundura da mina, a qual era o piso quatrocentos, trabalhavam os homens em vez das bestas no carrego de minério, sendo este modo em tudo semelhante ao das minas de S. João e Algares. Subia o minério até ao cimo junto com os homens e materiais por um elevador malacate, o qual é muito antigo, mais que o de Algares. Devia, porém, este elevador fazer sua revisão uma vez em cada semana, razão porque em estes dias faziam os mineiros grandes subidas por seus próprios pés, dos fundos até ao cimo. Trabalhavam no departamento da oficina todos os ofícios de fazer máquinas e engenhos & suas reparações, fazendo-se também outros serviços de ajuda na laboração da mina. Por isto, aí ficavam os torneiros, os caldeireiros, os ferreiros, os frezadores, os latoeiros, os serralheiros e os carpinteiros. A Achada do Gamo era um lugar situado a treze quilómetros da mina e tinha seu próprio departamento, trabalhando nele os homens nos carris da ferrovia e em outros serviços sem especialidade, sendo os homens escolhidos para fazerem estes trabalhos entre os mais antigos. Labutavam aqui também os manguistas e os marrilos, chamados desta guisa por trabalharem com um marril que era em modos de um martelo pequeno para triturar o minério à mão, segundo as medidas que se pedia. Neste penoso ofício trabalhava a maior força de gente, chegando a ser na quantia de quase mil homens; veio, porém, este ofício a acabar de todo no começo dos anos vinte com a montagem da primeira máquina trituradora, aparecendo outra mais tempos depois. Nesta Achada do Gamo foram levantados altos-fornos nos anos trinta, começando-se a produzir enxofre de grande qualidade, serviço que faziam os homens que aqui trabalharem anos a fio, arruinando seus corpos e saúde num nada de tempo.
No departamento de serviço geral trabalhavam pedreiros, gente de limpeza e outra mais, ocupada que estava em serviços de rua e da localidade, coisa feita em Aljustrel pela municipalidade e aqui pela empresa por ser dela a terra, como o dissemos em princípio. Tinha esta mina como a de Aljustrel, guarda privativa e republicana também, não as havendo nunca em demasia em tempos de perturbação da Ordem Pública; & mais tinha correios, & igreja, & fábrica de luz que era movida a carvão para serventia exclusiva do supradito palácio; & tinha grande quantia de casario para os empregados menores, porém, sem haver água ou luz nem outros demais benefícios da civilização. E tudo isto que demos conta não se fez em um dia, fazendo-se isso sim aos poucos como Roma & Pavia, & a maior parte em nosso tempo. Porém, não chegaram nunca as ditas casas para dar cobertura à maior parte dos trabalhadores, havendo por isto grandes agravos para eles. Teve esta mina a sua maior força, vendo-se as produções & materiais melhoramentos & lucros, nos trinta anos que vão da Guerra Europeia à Segunda, chegando a ser a maior quantia de operários de dois mil e duzentos poucos mais ou menos, não entrando nesta conta as famílias & filhos. Foi esta terra de São Domingos uma das primeiras de Portugal a ter ferrovia, e dizem as gentes do lugar, mostrando nisso muita honra, ter ido a ela em visita El-Rei Dom Carlos que Deus haja, para ver as máquinas locomotivas. Tinha esta ferrovia a via estreita, a qual se muito usou em tempos antigos na indústria, e fazia a ligação da terra de São Domingos ao porto de Pomarão que é no Guadiana, para o escoamento do minério, o qual indo por rio até Vila Real de Santo António, seguia depois por mar até ao Barreiro, Antuérpia ou Inglaterra. Para este transporte tinha a empresa mineira dezanove locomotivas, vagões não contámos, e dois barcos de rio apenas, porquanto o carrego do minério era feito muitas vezes por barcos estrangeiros. Lembram os mais velhos desta terra por ouvir contar que houve tempo antes da ferrovia em que o carrego do minério era feito por comboios de mulas, as quais iam em fila por caminhos ermos até ao dito porto de Pomarão. Sendo em princípio esta terra desabitada e construída de raiz, pelo modo que ficou escrito, vieram para aqui gentes de terras dos concelhos vizinhos e da província do Algarve, as quais andavam à míngua de pão & trabalho por serem homens de agricultura sem vintém, lançados à desventura, tendo por única e última riqueza a sua vida, a qual valia o que lhes quisessem pagar pela força de seus braços e pernas. E os que por este modo não vieram, não cuideis de serem portugueses, posto que ingleses ou estrangeiros eram por certo, e vinham servir de chefes & engenheiros, sendo muito bem agasalhados pela empresa e aqui deixando sementes de suas raças & humores em mulheres portugueses, que lhes muito bem prouve ter para si, entre criadagem de servir ou mulheres casadas, não havendo nesta escolha outra lei senão a das suas paixões & apetites carnais. Logo lançaram raízes estas gentes na terra de São Domingos, fazendo suas famílias e, pelo passar contínuo e perpétuo dos anos, aqui nascendo gente que da mina vivia, como seus pais e avós, & nela morria para alívio de seus corpos. Tinham eles por alegria comum as festas de Santa Bárbara e de São Domingos, fazendo-se uma por especial atenção dos homens que labutavam no fundo da terra, & a outra se fazia por protecção às gentes da localidade. Nesses dias festivos havia grande foguetório na represa, a qual era um pequeno lago de serventia da mina e ficava à entrada da povoação, & bailes na tapada, e se ouviam músicas da banda «Mason and Barry L.td», saindo a dita banda à rua nesses dias e noutros especiais. Faziam também jogos de pau de cebo, de puxo de corda, com uma vintena de homens, & corridas de bicicletas, burros ou patos, que é coisa de maravilhar forasteiros. E por isto contamos o modo por que faziam estas correrias de patos que eram por esta guisa: atava-se-lhes um atilho de roda do pescoço, pegando nele seu dono, e tendo na outra mão um pau ou cana de malhar em pato para o fazer andar, o qual deveria fugir em uma centena de metros sem poder voar; e entravam nestas correrias quantas homens quisessem em tendo seus patos, porém, só ganhando aquele que com sua ave mais corresse. E com isto & outras coisas mais folgavam eles em esses dias, fazendo suas festas pelo modo que ouvistes contar. E de namoros & namoricos, certo é que os havia com seus costumados e sabidos desvarios & penas de paixão, não os contamos neste lugar por ser coisa igual em toda a parte."
Fonte: Crónica da Ordem Pública (1861-1932) / Paulo Guimarães - Aljustrel: Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira do Sul (1861-1932), 1984. - 103 pp.; il.
*Em 1983 escrevi uma pequena diversão literária e que, ao mesmo tempo, se destinava a colocar em circulação junto da população mineira de Aljustrel, com a esperança de poder encontrar ainda testemunhos orais relativos a acontecimentos ocorridos em data anterior aos anos ‘40 do século XIX. Nela compilava as informações que dispunha a partir dos arquivos locais e de alguns escassíssimos testemunhos, como o de Manuel Patrício, antigo trabalhador mineiro e sindicalista, e irmão do militante anarco-sindicalista Valentim Adolfo João, que tinha falecido em finais dos anos ‘60. Recordo ainda que nessa altura os arquivos da PIDE e do Ministério do Interior estavam inacessíveis. Os acontecimentos eram narrados como nas crónicas antigas e acrescentei-lhe uma introdução puramente ficcional. O texto acabou por ser publicado pelo Sindicato dos Trabalhadores Mineiros da Indústria do Sul e impresso em Beja na tipografia do Diário do Alentejo com uma tiragem de 750 exemplares.(Paulo Guimarães)