Na Mina de S. Domingos Continua a greve - Os grevistas mantêm as suas reclamações, mas estão em atitude ordeira
Jornal "O Século" de 2 de Setembro de 1907 (Jornal "O Século")
Mértola 1.-T. - Os grevistas da contramina formularam ao engenheiro Harvey reclamações em que se pede a obrigação da empresa subsidiar com metade do salário os operários que se impossibilitem por acidente no trabalho. 0 engenheiro Harvey mostrou-se favorável, dizendo aguardar a solução de Londres. Os grevistas do departamento da Achada do Gamo pediram trabalho de 10 horas no verão e de sol a sol no inverno, havendo acordo, mas não trabalham enquanto não trabalharem os barreneiros, por solidariedade com estes. Chegaram mais forças de cavalaria e infantaria, estando aquareladas, vista a atitude ordeira dos grevistas, Na povoação nas Paredes há numerosos vestígios das balas disparadas no primeiro dia da greve. Apenas o escritório da empresa está guardado pela polícia. Continua havendo esperanças de que a greve termine brevemente por acordo.
Pomarão, 1-T. - Comquanto persista a greve geral, há hoje mais sossego.
Esta manhã chegaram aqui, vindas de Vila Real de Santo António, mais 30 praças de infantaria 4, que logo seguiram em comboio expresso para a Mina, onde também chegou pouco depois, pela via de Serpa, um reforço de cavalaria de cavalaria.
GREVE DE MINEIROS
A caminho de S. Domingos
Navios no Pomarão (Jornal "O Século")
Mina de S. Domingos, 6. - Às dez horas da manhã o vaporsito que de Vila Real faz carreiras para Mértola está já de caldeiras acesas, fundeado ao largo, a espera dos passageiros. Na ponte cais há grupos de camponeses que vão regressar a suas casas depois de terem feito a sua temporada de banhos n'esta terra algarvia, e, como o vapor não pode atracar apesar de ser maré cheia, uma barcaça está pronta a conduzir todos para bordo, São umas vinte e tantas pessoas que pretendem seguir viagem, e como o barco é pequeno, fica em poucos segundos cheio de gente, de bagagens e de mercadorias. A água quase toca na borda, e por mais afoito que se seja, a gente, cravando os olhos na lancha, não pode furtar-se ao vago receio de que tudo aquilo se afunde, e involuntariamente, dando largas ao instinto da conservação e ao desejo que todo o homem sente de viver, deixa-se ficar na ponte, preso àquelas tábuas denegridas e semi-apodrecidas pela ação implacável do tempo. Entretanto, vão chegando de Aiamonte, a pequenina a alegre cidade espanhola situada a dois passos, embarcações de toda a ordem, desde a chalupa veleira até à chata que traz à proa um pedaço do pano a servir de vela.
O espanhol mistura-se com o português, a guarda fiscal vigia com imperturbável atenção todos os que veem do país vizinho, e ao passo que o movimento de barcos na baía aumenta constantemente, povoando a água de centenares de velas de todos os feitios e de todos os tamanhos, a lancha do vapor da carreira continua a meter mais gente, que se empilha a bordo como sardinha em canastra. Por fim parte e o primeiro silvo, anunciando a largada, corta vibrantemente o espaço. Às dez e vinte e cinco o vapor suspende e começa a subir o Guadiana. De um lado fica-nos Vila Real, cujos edifícios, brancos como a neve, fulguram batidos pelo sol de fogo: mais para além, envolta n'uma neblina diáfana, a terra algarvia. O espaço todo azul, a faiscar, afoga-se no mar, que ao longo se alonga, e que nem uma vaga arrepia, na campina que fica à esquerda, e nos escalvados montes espanhóis que delimitam horizonte à direita. Passa-se Aiamonte, “ciudad e cabeza de Partido”, segundo informa um grande letreiro que se avista no cais; o vaporsito, que navega ao sabor da corrente, faz esforços inauditos para apressar o andamento, e quanto mais caminhamos para o norte, mais triste e mais árida se torna a paisagem, que aqui e ali, com os serros nus, onde não cresce uma arvore, onde não se apercebem sinais de vegetação, apresenta por vezes um aspeto de um interminável deserto.
O rio corre sempre por um vale abaixo, sucedendo-se de um e de outro lado os montes e as serranias. Após uma hora de viagem surge-nos a costa alentejana, e, se até a paisagem é seca e desolada, d'aí em diante mais triste se mostra. Apenas na margem portuguesa aparecem de raro em raro pequenos olivais verdejantes que crescem á beira do rio e que penhoram um pouco a monotonia esmagadora das terras ribeirinhas. E sob um sol que queima, sol do Sul que fere a vista e que não nos deixa abrir os olhos torturados pela luz crua que reverbera em todos os sentidos, a viagem continua-se pelo Guadiana fora, sempre orlado de montes áridos.
O rio é, no entanto, lindíssimo. Largo, sereno, sem escolhos o sem precipícios, espreguiça-se suavemente pelo vale, sem um estremeção que lhe agite a superfície límpida, sem um arrepio mais forte que lhe quebre a tranquilidade com que corre para o mar. Segue quase sempre em linha reta, e se por um momento perde essa direção, breve a retoma, depois de tornear um monte mais elevado que se corta sobre a margem quase a pique. Sinais de vida não se encontram durante as primeiras duas horas da travessia. Apenas na margem portuguesa aparecem de espaço a espaço os guardas que vigiam a fronteira, e um ou outro casal perdido na serrania inculta. Mas depois a costa modifica-se um pouco, há já mais verdura e mais vegetação, e Alcoutim mostra-se-nos surgindo numa curva apertada da margem. A vila é pequena e semelhante a todas as terras alentejanas. Muito caiada e limpa, finca-se n'um pequeno vale que se estende lá para cima e nas vertentes de dois montesitos, povoados de casas.
Da outra banda, á direita, fica uma povoação espanhola, exatamente semelhante à vila portuguesa e pouco mais ou menos do mesmo tamanho. É San Lucar, um povo de agricultores, que vive arrancando dos terrenos quási maninhos que o cercam pouco mais do que o necessário para viver. Pode ser que não suceda assim, mas o viajante que fixe vista naquele povoado e que depois a alargue para as charnecas e para os montes tem impressão acabrunhadora de que toda a gente que ali vive morre de fome e de miséria.
O vapor pára em Alcoutim, onde larga alguns passageiros portugueses e espanhóis, e depois de curta demora principia de novo a mover-se, a caminho de Pomarão. Passa-se ainda por uma outra aldeia espanhola, a Lage, importante por ser ali que embarca o minério extraído d'umas minas de cobre, situadas lá para o interior, e depois de meia hora mais, o rio faz de repente uma grande curva, quebrando-se quási em ângulo reto, o Pomarão aparece-nos á vista. À direita fica a ribeira de Chança que continua a delimitar os dois países e para cima, na costa lusitana, a serra do Campo Branco, atravessada pela linha férrea Decauville que leva até S. Domingos.
Pomarão é uma aldeia pequeníssima, situada n'uma encosta suave, na margem direita do Guadiana. O viajante que tenha ouvido falar das minas de S. Domingos, da quantidade de minério que d'elas se extrai, dos vapores que vão ali buscá-lo, julgará que Pomarão é uma terra importante, rica e opulenta, mas ao avistá-la tem de mudar de juízos, porque reconhecerá que não é mais do que uma aldeola semelhante a tantas outras existentes por esse Alentejo. Se, todavia, se demorar um pouco observando o porto, verá por toda a parte impressa a garra potente da atividade inglesa, que tudo transforma, que tudo modifica e que é capaz de mudar as coisas mais insignificantes, os campos mais incultos, ou as serranias mais ásperas em elementos produtivos e em fontes de inexaurível riqueza. Sobre as serras fronteiras ao rio construiu a empresa concessionaria da mina do S. Domingos cais vastíssimos, colocados em planos diferentes e que se estendem pela costa fora n'uma extensão de mais de 500 metros. A linha férrea Decauville vem até á ponte cais, onde atracam os vapores, e o minério, britado como o cascalho das estradas, ou pulverizado pela ação do tempo, sai diretamente dos vagonetes para os porões.
A carga e descarga faz-se com extraordinária presteza, apenas com o auxílio de meia dúzia de homens, porque poucos são os precisos para lidar com os maquinismos, guindastes, locomotivas, balanças, etc., que substituíram a força humana e que tudo movem e agitam; as linhas férreas cruzam-se por todos os lados, em serviço no cais andam constantemente muitas locomotivas, e, enquanto dos depósitos de minério saem de momento a momento dezenas de vagões carregados, cá de baixo, da beira do rio, ondo estão instalados os depósitos de carvão, partem outros cheios d'esse combustível que há de vir para a mina alimentar as maquinas da luz elétrica, da condução da agua aos elevadores, as oficinas, os minúsculos comboios, etc.
A água, extraída do rio, filtrada e adoçada, está canalisada por toda a parte, e tanto serve para esfriar o carvão e o minério como para consumo das máquinas a vapor. O telégrafo e o telefone ligam o porto com as minas e com as estações intermedias: a iluminação deve ser magnifica, tantas são as lâmpadas elétricas espalhadas pelo molhe, e a precisão como tudo se move e funciona é tal, que a admiração que irreprimivelmente se experimenta pelos criadores de toda essa grande atividade industrial que se alastra pelos molhes não tem limites. Quando o Guadiana o vapor da carreira, entrava em Pomarão saía um enorme vapor alemão, da praça de Bremen, carregado de minério, que cortava velozmente as águas profundas do rio, como se fosse um enorme monstro pré-histórico. Atracado à ponte estava outro mais pequeno, inglês, e fundeado a certa distância via-se um terceiro, também de grandes dimensões e igualmente inglês, à espera de começar a receber carga. Mais acima, havia dois ou três barcos de vela a descarregar carvão, e enquanto os guindastes não deixavam de trabalhar e uma centena de vagonetes se desliza pela rede emaranhada de rails, que assentam nos paredões e nas esplanadas, o vapor que vem de Vila Real larga para Mértola com um único passageiro. Todos os outros ficaram pelo caminho e em Pomarão.
O rio, de Pomarão em diante, aperta-se um pouco e, à medida que o Guadiana avança navegando aí a três ou quatro milhas à hora, as margens vão desfilando suavemente, sem perderem, todavia, o aspeto triste de sempre. A espaços, porém, notam-se pelas margens bocados de terreno fértil cultivado com esmero: mas a ausência de povoados, a aridez dos montes, onde se notam os efeitos devastadores dos grandes calores caniculares, lançam-nos no espírito um invencível cansaço, e os olhos, fatigados já com a uniformidade e a monotonia acabrunhadora da paisagem africana que há quase cinco horas nos vem atormentando, recusam-se a ver mais e as pálpebras unem-se teimosamente. É que a viagem arrasa, faz sono e mergulha-nos n'uma tal prostração, que não há vontade, por mais forte que seja, que possa infiltrar-nos no organismo uma parcela de energia. Ainda uma hora mais de caminho, e estamos em Mértola. A rica vila alentejana mostra-se-nos banhada de luz, branca, quase lívida, como todas as terras do sul. O calor continua a ser intenso, e como não há tempo a perder, porque a noite vem perto, procuro á pressa um carro que me leve para S. Domingos, onde por vezes tinha perdido a esperança de chegar, tão demorada, tão fatigante tem sido a viagem, feita em comboio e em vapor até aqui, e quem sabe? -talvez em balão d'aqui em diante. Para a mina não há estrada, diz-me um alentejano espaduado a quem peço informações; todavia, o caminho não é muito mau, acrescenta o homem, para me reanimar um pouco. Em busca de meio de condução gastam-se alguns quartos de hora, e por fim lá se consegue uma carripana do século passado, que se propõe levar-me até ao primeiro centro mineiro do país, E a verdade é que, sem grandes percalços, sem contratempos de maior, aos solavancos e aos empuxões, consigo entrar na povoação de S. Domingos já noite alta, dois dias depois de ter saído de Lisboa.
E agora uma pergunta a quem superintende nos negócios deste país: Sendo Mértola, como é, uma das mais importantes Vilas do Alentejo e S. Domingos um centro mineiro como não há outro em Portugal, que dá ao Estado um rendimento anual de mais de trinta contos de reis, porque não tem ainda Mértola caminho de ferro e porque não se tem construído esse caminho de ferro até à mina? Pois não serão aquela vila, centro comercial de primeira ordem, e esta povoação, de mais de 6000 almas, dignas de tal melhoramento? E não será uma vergonha conservar este foco de atividade e de trabalho fecundo isolado do resto do país, como se se estivesse à espera de que os ingleses, que tanto têm feito n'esta região, a dotassem com mais esse melhoramento? Mas ponhamos de parte o caminho de ferro e diga-nos o Estado: porque não se faz ainda um pedaço de estrada que torne suportável o trajeto de Mértola aqui? Onde para um projeto que n'esse sentido foi elaborado em tempos, quando era ministro o sr. Manuel Francisco Vargas? Que extraordinário contraste forma a incúria portuguesa com a energia, com a perseverança e com a força de vontade que os ingleses aqui têm despendido a rodo, para transformarem uma serrania escalvada no que ela é hoje: uma povoação magnifica, com belos jardins e arvoredos compactos a ensombrá-la, e uma terra onde a riqueza se palpa, onde a vida palpita por todos os lados, fecunda, produtiva e triunfante.
Um modus - vivendi conciliador
Oito horas da noite. Num relance, quem chega compreende logo que está n'um sítio onde se trabalha a valer, onde se despende muita energia para se arrancarem das entranhas da terra esses pedregulhos escuros d'onde, em porções colossais, se há de extrair mais tarde o cobre reluzente. Por toda a parte, n'uma área de mais d'um quilómetro quadrado, se trabalha e se labuta ininterruptamente, e enquanto nos chegam aos ouvidos, d'envolta com o som áspero dos malhos batendo o ferro nas oficinas, o rugido dos maquinismos, que não descansam, a luz elétrica cai em torrentes por toda a região mineira, derramada pelos arcos voltaicos e pelas lâmpadas, que rasgam implacavelmente a treva com os seus feixes luminosos. A primeira impressão que assalta o forasteiro é a do deslumbramento. Depois, vem a reflexão e admira-se com entusiasmo tudo o que a empresa concessionaria tem feito aqui, gastando rios de dinheiro, transformando tudo, espalhando por todos os lados, em todas as direções, como um semeador audaz, o ouro, o trabalho e o progresso.
Quando chego, procuro informações da greve e obtenho-as, as mais completas, d'um mineiro já idoso, que fuma tranquilamente o seu cachimbo sentado no portal da sua humilde e limpa habitação. A greve terminou porque prometeram atendê-los, concedendo-lhes algumas das regalias que eles pediam. Essas regalias consistiam na redução das horas de trabalho a oito, no aumento dos salários a 800 réis, na proteção às famílias dos mineiros mortos por desastre e n'outras de menos importância. Os três mil trabalhadores estão aguardando a resposta que, aos seus pedidos, há de vir de longe e, se ela lhes for favorável, quedar-se-ão. Se, todavia, o não for, a greve rebentará de novo, ainda que com bem poucas probabilidades de êxito, porque o operariado não está preparado para um movimento útil e profícuo. Empresa e mineiros assentaram, pois, entre si, n'um modus-vivendi, que foi um expediente conciliatório e nunca uma solução definitiva do conflito que inesperadamente surgiu.
Na mina estão ainda cerca de 150 praças do exército, as quais, segundo parece, não retirarão tão cedo. Abrigam-se em diversos barracões da empresa, estando os oficiais aquartelados no palácio da direção, que é um belo edifício, circundado de jardins. Todo o operariado, na noite em que cheguei, trabalhava já. Há por aqui muito que ver e que admirar e, como a greve pôs as minas em foco, vem a propósito falar d'elas com minucia. - A.
VIDA MINEIRA
As minas de S. Domingos
Gravura da Mina de São Domingos (Jornal "O Século")
Mina do S. Domingos, 7. - Acordo cedo, visto-me depressa e corro para as minas, Sinto uma ansiedade irreprimível de ver bem de perto, em plena atividade, o mais rico e importante centro mineiro do país, do qual todos têm ouvido falar, mas que poucos conhecem, mediocremente sequer. A hospedaria onde me alojei fica n'um alto que domina toda a povoação, e da porta de um pequeno quintal, para onde dá a casa de jantar, avista-se toda a aldeia, que se atinha em intermináveis arruamentos que se baralham e confundem, para o norte e para o nascente. A esta hora matutina vai já por toda a parte uma atividade febril, e como o sol, que vem rubro e ameaçador, tenta galgar o monte e estender pela vasta serrania o seu manto de luz inflamada, desço até ao vale, onde há já dezenas de locomotivas n'um vaivém constante, arrastando vagonetes carregados de minério que vai para os depósitos situados lá para baixo: e de pedra e terra, que hão de ir, a primeira para a contramina a fim de tapar os buracos que os mineiros vão abrindo a duzentos metros de profundidade, e a segunda para os grandes aterros que há anos se veem formando nos terrenos maninhos, na serra abrupta e nos montes escalvados que se distinguem a curta distancia. O trabalho recomeçou já em todas as secções: os maquinismos rangem por todos os lados, as maquinas de locomoção e de elevar a agua não param um instante, não deixam de resfolegar potentemente, e junto de mim, a passo lento, como quem caminha para um patíbulo, passam, de momento a momento, grupos de mineiros, que dentro em pouco se somem nos túneis e se perdem imediatamente na terra, Para ver e admirar um estabelecimento d'esta natureza é, porem, necessário método, Comecemos, pois, de um lado, a eito.
Tomo por um carreiro estreito e cheio de pó, que se estende na minha frente, e vou, sem bem saber como, dar a um vasto espaço que fica a mais de trezentos metros da mina, junto da Decauville que conduz a Pomarão, e no qual há, dispostos como os tabuleiros das marinhas, depósitos d'uma coisa escura que à primeira vista não distingo. Aproximo-me mais, e alguém que por ali passeia com a aprumada gravidade d'um inglês, caminha para mim e oferece-se amavelmente para cicerone. Aceito, e começo a fazer perguntas sucessivas ao homem, que dentro em pouco declina a sua qualidade de guarda, o que de resto não era necessário, porque os botões amarelos que lhe guarneciam a jaqueta e uma fitinha circular que ostentava no braço esquerdo denunciavam a sua profissão. Os tais depósitos continuaram a atrair-me a vista, São, nada mais nada menos, do que montões de cobre que a agua tirada das minas trazia consigo e que, por meio de filtros especiais se colhe pela canalização fora e se transporta depois para ali, onde perde toda a humidade e metido em sacos depois de bem seco, a fim da seguir para Inglaterra, A pouca distância, na Achada, ficam os depósitos do outro mineral, que se acumula, quebrado à força de marreta, em enormes montões.
Em volta há vias-férreas, e os vapores vão tanto a um lado como a outro buscar o minério, que para eles é arremessado á pá por dezenas de operários. A linha do Pomarão atravessa todo o vale, e passa por ali perto, a alguns metros apenas. Por ela circulam já trens com fartura, que se dirigem para o Guadiana transportando toneladas aos centos d'essa espécie de pedra escura, parecida com o granito, d'onde sairá o metal valioso. A linha, diz o guarda, tem mais de quatro léguas, a sua construção foi dispendiosíssima. Corre quase sempre por entre cerros elevados, aravessa toda a serra do Campo Branco, numa rampa quase continua até ao rio. Possui quatro túneis, dois dos quais com mais de duzentos metros cada um, alem de diversas pontes e viadutos. A subida para a mina é áspera, e quando os vagonetes veem carregados de carvão ou de quaisquer outros objetos, são precisas duas máquinas para o minúsculo comboio transpor alguns trechos da linha. No percurso, as locomotivas têm de se abastecer duas vezes de combustível, em duas estações intermediarias situadas uma na aldeia de Sant'Anna e outra pouco mais ou menos ao meio da estrada de ferro.
Ainda na Achada fica uma das presas de água donde se abastecem a povoação as minas e as máquinas. N'esta altura do ano, e com os calores intensos que tem feito, o lago que comporta, alguns milhões de metros cúbicos, está quase seco. Apenas n'um ou noutro ponto se veem perdidos no leito arenoso alguns chaboucos que em consequência da evaporação não tardarão também em secar.
A via-férrea passa sobre a presa por uma ponte bastante extensa. Em volta dos depósitos e por todo o espaço que me cerca vejo grossas manilhas de ferro quase todas pintadas de branco. Serve essa canalização, para chupar do lago a água que há de ir para as entranhas da terra, lá em cima, na mina, refrescar o mineral e tornar mais suportável a atmosfera sufocante que lá se respira, e que dificulta extraordinariamente a extração do cobre. Para a direita, e sobranceiros ao lago, ficam os formidáveis aterros que se têm ido formando com a terra que sai da corta, um poço descomunal, aberto ao lado da mina para a aliviar.
Esses montões imensos de entulho e de terreno pardacento estendem-se pela serra fora e dão quase a volta ao monte pela nascente. Atravessam-nos diversas linhas férreas. e onde passam a cada minuto vagões carregados, que vão até ao fim da formidável trincheira, para ali despejarem a carga.
Dispostos nas surribas, aqui a ali, vigiando tudo, olhando tudo e fixando especialmente a atenção em quem vem de fora e é desconhecido na povoação, há guardas da Polícia da empresa que fazem sentinela de armas ao ombro. O seu fardamento é semelhante ao de todos os policias portugueses, e quando deles cravei o olhar tive a sensação de que me encontrava diante de guardas da polícia de Lisboa. Avançámos, porém, para o norte, e continuámos a admirar esta obra gigantesca, onde se tem despendido rios de dinheiro e que ao forasteiro dá, bem nítida, a medida dos lucros fabulosos que a empresa deve tirar das minas.
Vindo da Achada, passa-se por várias instalações relativamente pouco importantes. Canalizações d'agua, vários depósitos de minério, casinhotos vários que servem de refúgio aos guardas e de depósitos de material, etc., e por fim a estação. Tão vasta ela é, tantas linhas se cruzam em diversos sentidos, tantas locomotivas arrastando vagonetes por ali giram ininterruptamente, que quem a vir pela primeira vez, salvo as devidas proporções, compará-la-á como uma gare de qualquer cidade importante, onde entrem e saiam em cada dia comboios às centenas.
A empresa possui para cima de trezentos vagonetes e mais de vinte máquinas a vapor. E tudo isso se emprega, sem uma hora de descanso, em transportar minério para Pomarão, em acarretar carvão d'ali para a mina, em levar terra para os aterros, em conduzir dos poços mineiros para o ar livre e mineral que os operários arrancam, em levar pedra para as galerias exploradas, na condução de água potável, etc. A lufa-lufa é constante, os trens não param um minuto, e se na mina há cousas que admirar, a circulação constante das tranvias não é decerto o que merece menor atenção. As locomotivas, segundo vejo pelas que deslizam diante de mim, não são todas de força igual, nem das mesmas dimensões. Umas são pequeníssimas, de força reduzida. Servem para os serviços internos, isto é, para trabalhar aqui, empregando-se em transportes diversos, desde a mina até aos aterros, dali até à corta, e da corta para as barreiras. Outras, as mais poderosas, fazem serviço na linha férrea de Pomarão.
As placas giratórias, as agulhas, as mangueiras para a água e tantos outros aparelhos e apetrechos indispensáveis nas instalações ferroviárias abundam na gare, onde apenas faz serviço uma dúzia de homens se tanto. É que os ingleses, extremamente práticos, procuram sempre simplificar o trabalho, e, desde que haja um maquinismo que possa substituir com vantagem o braço do homem, não hesitam na escola. À direita e à esquerda da estação erguem-se outras edificações rudimentares, que são destinadas aos chefes, a repartições administrativas e a tantos outros fins que seria fastidioso enumerar.
Respira-se, porém, um ar que sufoca, saturado de gazes que se evolam do minério e do carvão de pedra que se amontoa por todos os lados, formando montanhas enormes. O calor apesar de ser cedo ainda, está a apertar, e com este sol alentejano, abrasador e doente todo cuidado é pouco.
As oficinas gerais, instaladas em grandes pavilhões por onde entra o sai o material circulante, ficam a dois passos da estação ocupando uma área de mais de três mil metros quadrados, N'elas se empregam dezenas de operários, e ali se fazem todos os trabalhos de serralharia e fundição indispensáveis nesse centro industrial, como este.
As forjas sucedem-se umas às outras, nelas crepita da manhã à noite o carvão de pedra em brasa que há de tornar maleável o ferro e o aço. Não há avaria de máquina, ou de locomoção, quer de outro género, que não seja ali remediada por artífices habilíssimos. quer portugueses, quer espanhóis e ingleses. Os primeiros, porem, são os mais numerosos, sendo eles que dirigem algumas secções, que têm sob as suas ordens dezenas de operários forjadores, serralheiros, etc.
É claro que em cada oficina se fazem trabalhos especiais.
N`umas trata-se da reparação das locomotivas, que se vão deteriorando com o serviço violento a que são obrigadas: n'outras da construção de vagonetes e dos concertos que esses veículos a cada instante necessitam: n'outras, da afinação de ferramentas que se forem deteriorando com o uso constante, e ainda n'outras, as mais importantes, da fundição das peças que não podem ser forjadas. E a fundição está de tal forma instalada, funciona tão bem que só chegam a modelar peças de dimensões excecionais que só os grandes centros fabris executam. Todos os maquinismos, tais como de serrar, de cortar o aço e o ferro e do furar são movidos a vapor. A iluminação é feita a luz elétrica, que cai de dezenas de lâmpadas do teto e das paredes dos pavilhões. Só nas oficinas há empregadas centenas de contos de reis, e como esta povoação, cuja existência data de há pouco mais de cinquenta anos, é em ultima analise a apologia triunfante do trabalho perseverante, da energia que não conhece desfalecimentos e da vontade inquebrantável d'uma raça forte que se afirma onde quer que se fixa, não há quem não se curve reverente perante as maravilhas da industria e da ciência que por aqui se veem de mãos dadas, concorrendo para um único fim:-arrancar do seio da terra fecunda um metal que vai rareando e que por isso mesmo se torna cada vez mais precioso.
Depois de ver as oficinas, de ver funcionar uma ou outra máquina, de ter pedido a um empregado superior esclarecimentos sobre tudo o que me cercava, saio e princípio a andar d'um lado para outro, porém, inconscientemente. Os meus olhos estão já cansados tanto ver e admirar e quando me dispunha a voltar para a hospedaria, onde o almoço me esperava, alguém me pergunta se já vira os armazéns gerais. A resposta foi negativa, -Pois tem que ver, replica-me o meu interlocutor, um alentejano espadaúdo, de grande chapéu de abas largas, que me cumprimentou com as maneiras mais afáveis d'esta vida.
Estão os armazéns situados a pouca distancia, e, para só chegar até eles, atravessam-se diversas linhas ferras e passa-se um viaduto que corta um aterro. Por fora, o edifício principal não é mais do que um casarão antigo, com dois largos portões. Por dentro, há somente que admirar os montões de géneros e de mercadorias de toda a ordem que se empilham até chegar ao teto. Há ali de tudo que é preciso na mina, e como a casa não chega para recolher todos os géneros, a outra e parte do stock da empresa acomoda-se n'uma casa ao lado. Separa os pavilhões um largo espaço empedrado. O fornecimento vale alguns milhares de libras.
Um pouco para cima, montada n'uma espécie de ponte formada por grossos madeiros em cruz, está uma locomotora a rugir como uma fera enjaulada. Fora da barraca que abriga a máquina há uma enorme roda que gira constantemente, movida por um grosso cabo semelhante ao dos elevadores, aproximo-me, e, olhando na direção d'esse cabo, deparo com a boca d'um túnel escancarada e escura. Depois d'esse abismo, que parece pronto a engolir quem dele se aproximar, alguns vagonetes são carregados de terra e pedra. Veem da corta, lá de baixo, e, logo que o cabo do ascensor os deixa, pega-lhes uma locomotiva que os arrasta para os aterros da Achada. Mas do outro lado mais dois cabos semelhantes trabalham, movidos por um motor mais potente ainda. Servem esses para arrastar da contramina, até aí acima, ao ar livre, o minério que se explora e que vem dos fundos dos poços em vagonetes.
Estou, portanto, á entrada da mina, junto dos túneis, na porta d'um dos quais se vê uma placa de pedra com a data da sua abertura, 1854. Por ali formigam centenas de homens e crianças, mineiros que entram saem, rapazitos que carregam nos vagonetes barris d'agua para os operários, gente que trabalha e labuta denodadamente pela vida sempre em contacto com a morte, em cujos rostos se vêm impressas as garras destruidoras de quantos tormentos é necessário suportar n'este verdadeiro açougue humano para se angariar um misero borcado de pão com que se enganam os estômagos famintos. Entretanto, enquanto me entretenho a observar toda essa multidão que se agita, que berra e que barafusta, apodera-se de mim a nostalgia da árvore e da sombra, e fujo lá para cima, para a região dos jardins, onde espero repousar e absorver um pouco de ar puro que me refresque e me lave os pulmões saturados das emanações deletérias do minério, do fumo das máquinas e do pó dos caminhos. - А.
Uma excursão debaixo da terra - Os obreiros da treva - Fantasmas ou homens? - Como se extrai o minério?
Gravura do hospital (Jornal "O Século")
Mina de S. Domingos, 8. Só ontem a tarde consegui licença para descer à contramina. Os ingleses não são muito pródigos em conceder essas autorizações, ou com receio do que se dê com os visitantes d'essas furnas gigantescas d'onde saem riquezas incalculáveis algum incidente desagradável, ou por qualquer outro motivo que não me foi dado averiguar. Fleumáticos, quase impossíveis, falando por monossílabos, esses homens práticos não estão habituados a malbaratar o tempo, e se é certo que nos recebem sempre cortesmente, não o é menos haver no aplomb com que se nos dirigem qualquer coisa de intensamente sobranceiro que não nos deixa muito à vontade. É verdade que os homens que se encontram à testa d'esta verdadeira colmeia humana, habituados a conviver por largo tempo com portugueses, têm modificado bastante o seu temperamento; todavia, da rigidez inflexível, da altivez com que os filhos da Grã-Bretanha olham sempre os indivíduos das outras raças, muito e muito lhes resta ainda, E d'esse resíduo que os impõe no respeito de quem com eles lida, que os não deixa desnaturalizar, que os conserva eternamente ingleses e portanto eternamente práticos, não estão eles de modo nenhum dispostos a abdicar, por saberem bem que quando o fizessem lhes fugiria, desfeito e aniquilado para sempre, o seu prestigio incomensurável.
Na imaginação doentia deste povo, cuja ignorância é inconcebível e cujo atraso é espantoso, que não raciocina, que não sabe pensar e que circunscreve a sua existência apenas na mina fatal que o arruína, que o extenua, e que em paga da saúde que por lá deixa aos bocados apenas lhe dá uns miseráveis tostões, que , que dificilmente lhe chegam para matar a fome, a austeridade britânica, a disciplina que os ingleses por toda a região mineira mantém exercem uma influencia tal que quase o conduz à mais absoluta submissão. Reduzido a condição de máquina, que apenas tem obrigação de trabalhar e de produzir quando isso se torna necessário, o mineiro de S. Domingos é humilde, resignado e sofredor. Não reage nem se insubordina facilmente, em primeiro lugar porque tem família, e quase sempre numerosa, a manter, e depois porque sabe bem que, desde que deixe de trabalhar um dia, à noite lhe faltará o pão em casa. A greve passou. Dela não restam hoje mais do que uns leves vestígios a recordá-la, vestígios que se apagarão a breve trecho, voltando em seguida tudo à mesma. E esse movimento de três mil homens que ...ilegível… justas, falhou, porque não assentava numa base sólida que lhe desse garantias de êxito, porque era um empreendimento formado em areia. E como todos os empreendimentos assim, esse desfez-se quando o sacudiu a primeira nortada. Falhou, porque contra a couraça da fleuma inglesa poucos projéteis podem produzir efeito. Como já lhes disse, desci hoje à mina, e, enquanto transpunha os primeiros pisos do túnel, vieram-me à mente essas reflexões que para aí ficam e que os mineiros que ia encontrando pelo caminho, crivado de precipícios, me fizeram elaborar. Tratemos, pois, do inexaurível filão de cobre, mas, antes, duas palavras sobre a sua história.
Tive sempre um certo fraco pelas lendas, productos da fecunda imaginação popular, que os cerca de tanta poesia, que lhes dá uma cor tão suave, as tradições lendárias não podem deixar do atrair os homens que têm ainda na alma uma certa parcela de sonho, que vivem mais da imaginação do que de raciocínio, E a mina de S. Domingos, que é afinal tudo quanto há de mais material, de mais industrial e de mais prático, também tem a sua lenda. Foi no tempo da mourama, diz o povo, que nesta serra, qua em cavernas e montes pouco acentuados se estende a perder de vista, circunscrevendo o horizonte por todos os lados, se fizeram as primeiras explorações, rudimentares, é certo, mas frutíferas. E tanto isto é verdade, acrescentam os que acreditam em lendas, que, antes dos atuais trabalhos da exploração principiarem, se encontraram resíduos de metal fundido, sinais evidentes d'uma laboração antiquíssima. Nesses vestígios houve quem por mais duma vez atentasse, e até um dia por aqui apareceram uns homens de Mértola qua gastaram meia dúzia de libras e qua desistiram de continuar nas pesquisas por falta de perseverança. E a lenda continua quando afirma que um tal Nicolau, capataz dumas minas espanholas, encontrou um dia, não se sabe como, e talvez por obra e graça de alguma moura encantada, documentos dos tempos romanos que lhe indicavam a pista onde existia, ignorado e desaproveitado, o mais rico jazigo do cobre existente em Portugal.
Com esses documentos ou sem eles, o que não admite contestação, por ser um facto contemporâneo de muita gente que ainda vive, é que D. Nicolau apareceu um dia em S. Domingos, que encontrou a mina e que foi imediatamente registá-la na câmara de Mértola. Isto sucedeu há cinquenta e tantos anos. Bem seguro de que era um achado precioso, o Sr. Nicolau, levando no bolso os tais documentos romanos, segundo reza a tradição, partiu para Londres, onde por acaso encontrou o engenheiro D. Diogo Mason, a quem deu conta dos negócios que o levaram á capital da Inglaterra. Ora, daí a pouco, formava-se a empresa Mason & Barry, que aforou toda a serra, e ao mesmo tempo constituía-se a companhia francesa La Sabina, concessionaria exclusiva da mina. A sociedade Barry arrendava em seguida á referida companhia a sua concessão, e os trabalhos não tardaram em começar, estando hoje as duas empresas quase reunidas, em consequência da primeira, pela compra das respetivas ações, ter absorvido a segunda. Logo ao princípio, reconhecida a excecional importância do jazigo, se tratou de construir alojamentos para os operários que de futuro haviam de trabalhar na mina. E nisso foram os ingleses um pouco imprudentes, visto terem lançado as bases da futura povoação exatamente sobre o filão mais importante. D. Nicolau foi mais precavido, porque foi construir a sua casa a algumas centenas de metros para o norte. Um dia tratava-se de abrir os alicerces para um prédio, quando uma pancada mais forte do alvião veio revelar onde se encontrava o jazigo cobrífero. Era sob os prédios levantados de novo, sob o palácio do governo, sob a igreja, que estava a meia dúzia de metros.
D'isso resultou ser tudo arrasado, ficando somente d'essa povoação, que custara rios de dinheiro, meia dúzia de casas que ainda existem. Por sinal que numa d'elas está presentemente instalado o hospital, cuja farmácia funciona numa capela secular que os ingleses encontraram na serrania e que ainda hoje, apesar de ter uma aplicação tão profana, se pode ver tal qual era noutros tempos. Em duas palavras, ao correr da pena, a história da mina é esta. A lenda que a envolve não será das mais interessantes; todavia, serve para poetizar um pouco o mercantilismo que por aqui reina como senhor absoluto e indestronável.
Retomemos a descida. A mina deita para o ar livre, próximo dos elevadores em que ontem lhes falei, três bocas, que são outros tantos tuneis. Um vai para a parte superior das escavações externas, para a corta». O outro vai dar a um piso mais baixo, e o terceiro, o mais profundo e o mais extenso de todos prolonga-se até ao fundo da medonha ribanceira, por onde há linhas férreas em todos os sentidos. Por elas, circulam num vaivém contínuo percorrendo todas as surribas, dando a volta ao enorme poço e contornando-o por todos lados, á exceção dum, o do nascente, quatro ou cinco pequenas locomotivas a vapor, que arrastam vagonetes às dezenas, uns cholos de terra e de pedra, outros vazios. À saída dos tuneis, empedrados, para evitar a queda de terrenos desagregados pela água ou por qualquer outro agente destruidor e perigoso.
Uma vez na “corta”, que parece esmagar-nos, tão implacavelmente ela ameaça as nossas cabeças quando a olhamos cá de baixo, encontra-se, percorridos uns cem metros, um novo túnel. É aí que principia propriamente a mina.
Desse ponto em diante nunca mais se enxerga a luz do dia. Apenas a iluminar frouxamente o terreno que os nossos pés calcam, há aqui e além lâmpadas elétricas, que mal bruxuleiam na treva profunda, na treva eterna. Por toda a parte a sombra que apavora, e pelo caminho, de espaço a espaço, nichos onde a gente se recolhe para não ser apanhado pelas zorras pesadíssimas que veem de baixo carregadas de minério. Vai-se assim, por esse abismo dentro, à porta do qual caberia bem o verso que Dante gravou á entrada do inferno, até ao piso cento e cinquenta, isto é, até cento e cinquenta metros de distância do ar livre, do ar vivificador e salutar. Agora estamos em plena região do minério, numa vasta galeria, donde partem corredores que vão para um lado e outro. Aqui, como noutros pontos que ficam lá para cima, já trabalham mineiros, que á força de malhos abrem na rocha, por meio de brocas apropriadas, os furos que hão de ser carregados de pólvora e dinamite. Andam os desgraçados nus da cintura para cima, com um chapéu pequeníssimo na cabeça. Ao vê-los, não se sabe bem se são homens se fantasmas, e se não fosse a luz baça dos candis, que lhes alumiam o cerro onde trabalham, ninguém daria por eles.
Respira-se já a custo nesta altura da mina. O ruído dos malhos, dos vagonetes que vão duma galeria para outra buscar minério, e tantos outros sons confusos que a cada instante nos ferem os ouvidos, causam-nos uma impressão de pavor a que não se resiste.
Mas caminhemos mais. No pavimento da enorme galeria, cuja abobada é sustentada por colunas que se erguem aqui e ali, abrem-se poços que levam a uma outra galeria existente a muitos metros mais abaixo. A descida fazem-na os mineiros ou no elevador, ao qual eles dão o nome expressivo de jaula, ou por escaleiras. O primeiro processo é mais rápido e seguro, mas como é necessário ter com esses ascensores todo o cuidado, verificar antes de os pôr em movimento se todas as peças estão no seu lugar, os operários preferem fazer a descensão pelas escadas, que estão colocadas em linha quebrada. Os poços são forrados de madeira, á qual se prendem as escaleiras. Reconhece-se logo à primeira vista quanta firmeza de pulso e quanta presença de espírito são precisas para descer por essa forma. E, todavia, os obreiros da sombra deslizam por ali abaixo com uma rapidez incrível, como se um descuido, um pé ou uma das mãos postas em falso, não fosse para eles uma implacável sentença de morte.
Descendo os poços, alcança-se uma outra galeria, em tudo semelhante á primeira e onde centenas de trabalhadores procedem á desagregação do minério, voltados para a rocha, que num momento pode desabar e triturá-los. É esse mesmo um dos grandes perigos da exploração, porque não é muito raro encontrar dois blocos de mineral com as faces espelhadas ou sobrepostas, os quais deslizam imediatamente um sobre o outro, desde que lhes falte o apoio. Esses contratempos, que já têm custado a vida a alguns trabalhadores, são, todavia, absolutamente inevitáveis. Desçamos, porém, mais ainda. Na segunda galeria outros poços se abrem, que levam ao último piso, situado a duzentos e quarenta metros de profundidade. Ali o trabalho é intolerável e o ar tão denso que não há pulmões que o traguem. Dez minutos bastam para se sufocar, porque o calor é intensíssimo, porque tudo aquilo envenena e mata. Os próprios mineiros, habituados àquela atmosfera de fogo e de destruição, não a toleram por mais de um quarto de hora e, depois d'esse tempo, alagados em suor, a arfar aflitivamente, têm de ir em busca de um ambiente mais fresco e mais respirável, onde recobrem energia para continuarem na sua tarefa extenuante.
Tenho pressa de fugir do ventre da mina e subo por ali fora, quase tonto e tão oprimido que por vezes me assalta o receio de que vou cair inanimado para um canto. Acelero o passo, enfio pelo túnel, subo os pisos quase a correr e num dado momento olho para a frente e tenho a impressão de que o sol tapa a boca do viaduto. Afirmo-me mais, olho com mais insistência e reconheço que a larga placa rubra, que lá em cima fulgura, não é mais do que a luz da tarde, d'esta abafadiça tarde de setembro, que me fez lembrar os dias caniculares que em Lisboa nos deram 37 á sombra.
Minutos decorridos, estou cá fora. Sorvo em grandes haustos o ar que me acaricia, desoprimo os pulmões e o fantasma apavorante da mina afasta-se para longe. Ressuscitei, enfim. A.
Gravura da Igreja (Jornal "O Século")
Mina de S. Domingos, 10.-A povoação de S. Domingos, cujo nome lhe provém duma capela antiquíssima, com aquela invocação, que ainda hoje existe a dois passos da contramina, assenta n'uma colina pouco acentuada, que vem morrer num declive suave no vale por onde se faz o trafego do minério, onde estão instaladas as oficinas, a casa das máquinas, a estação ferroviária, etc.
Para o norte fica a casaria toda branca, que se alinha em arruamentos uniformes até à vertente oriental; e mais para o poente o palácio da administração, os edifícios habitados pelos funcionários superiores, a casa do capelão e do médico, a esquadra policial, etc.
Coroando todo o povoado, numa elevação que se ergue alguns metros acima do nível das habitações mais próximas, destaca-se a igreja, cuja porta dá para o nascente. É um edifício simples, com leves traços da arquitetura romana, cercado de ameias rendilhadas e com uma torre alta, donde se avista um horizonte vastíssimo. A povoação contém mais de mil moradias, pagando cada inquilino a renda mensal de seiscentos reis. Se por acaso se atrasar, se não satisfizer a tempo essa renda, ser-lhe-ão exigidos no mês seguinte mais duzentos reis. Tudo pertence á empresa Mason & Barry, a qual só pelo aluguer dos humildes tugúrios que mandou construir para os seus operários recebe por ano mais de setenta e dois contos de reis. S. Domingos, com as suas ruas todas semelhantes e formando retas extensas, com as suas casas perfeitamente iguais, constitui um verdadeiro labirinto, não sendo fácil a quem vem de fora orientar-se nesse emaranhado confuso de travessas e ruas que se cruzam por todos os lados, simetricamente, uniformemente, sem uma única irregularidade que lhe quebre a monotonia fatigante e quase opressora. Cada habitação tem três compartimentos apenas: a casa de fora, a cozinha e o quarto de dormir. Para o exterior uma porta e uma janela, e espalhados pelo lugar, aqui e além, marcos fontenários, onde quem quer vai buscar a água de que precisa. O povoado, disseminado pela encosta, com as filas de casaria como que sobrepostas, tem a forma dum trono e nele vivem para cima de seis mil pessoas, número aproximado da população deste grande centro comercial. Os estabelecimentos comerciais abundam, sendo alguns deles importantes. Os empregados da mina têm também uma cooperativa, onde se fornecem de tudo quanto precisam. A iluminação da aldeia é deficientissima, havendo apenas espalhadas pela área extensíssima que ela ocupa uma meia dúzia de lâmpadas elétricas.
O palácio da direção, que é o melhor e o maior edifício da Mina, fica num alto, isolado e solitário. Na frente tem um grande jardim, onde crescem plantas raras e onde, nesta época do ano, riem ainda as rosas-rubras e florescem as trepadeiras verdejantes. Um pouco mais para baixo fica o jardim publico, magnificamente tratado e tão viçoso, apesar do calor intenso que sobre ele tem caído, que mais parece um delicioso rincão de verdura de qualquer cidade do Norte, onde o sol seja mais benigno, do que um pedaço de terra bem cuidado e bem tratado, cheio de plantas e roseiras exóticas, desta serra maninha, que se alonga para todos os lados até onde os nossos olhos podem alcançar. Durante esta minha peregrinação pelo Algarve e pelo Alentejo, devastados pela longa estiagem, só em S. Domingos consegui ver flores; Só nesta aldeia, que é uma vasta feitoria inglesa, me foi dado encontrar árvores verdes e plantas viçosas que trouxessem ao meu espirito, cansado de tanta aridez, um pouco da suprema tranquilidade, uma parcela das energias vivificantes que só os bosques nos concedem quando a fadiga moral nos aniquila. É que os ingleses não dispensam, em volta dos seus “homes” recatados, alguns canteiros floridos. Os jardins de S. Domingos custaram rios de dinheiro. Foram plantados na rocha viva, onde se abriram grandes valas que se encheram de boa terra, e a sua conservação custa por dia alguns mil réis. No jardim publico há um coreto, revestido de alto a baixo de trepadeiras, onde aos domingos toca a banda de música que a empresa fundou e mantem na Mina. No palácio estão instalados os escritórios, o correio, o gabinete dos telefones, a casa de ensaio da filarmónica, etc.
Na Mina há também uma escola primária sustentada pelos proprietários da povoação, a qual é frequentada por mais de cento e cinquenta alunos. O professor ganha trinta e três mil réis por mês, um pouco mais que os professores primários portugueses.
Fronteiro à Mina fica o mercado, que ocupa três grandes pavilhões, onde, de pela manhã à noite, se vende de tudo. O povo de S. Domingos chama-lhe o pago, e ali se abastece de hortaliças, que veem de longe, de carnes frescas, de legumes, etc.
Quando cheguei a S. Domingos era quase noite, e, ao apear-me da pesadíssima carroça alentejana, que por um caminho pedregoso me trouxera de Mértola, situada a vinte quilómetros para ocidente, os meus olhos poisaram sobre uma enorme vala d'água que se estendia na minha frente e na qual se afogaram os últimos raios do sol. Tive a impressão de que me encontrava diante de um grande mar mediterrâneo, e atravessando quase a correr um imenso souto de eucaliptos, deparou-se-me um lago extensíssimo por onde vogavam suavemente dois ou três barcos carregados de gente. O mistério que tudo aquilo representava para mim, que chegava de fora e que só julgava encontrar aqui máquinas, mineiros e cobre em abundância, desfez- se dentro em pouco, quando alguém me disse que o lago não era mais do que um dos grandes depósitos d'agua que a empresa possuía em S. Domingos para abastecer a povoação e a mina, depósito que ainda agora contém mais de seis milhões de metros cúbicos.
Para conseguir que ali se acumulasse durante o inverno tanta água, a empresa aproveitou três vales que convergiam para uma depressão da serra e, fechando o mais baixo por meio de um dique, impediu a saída do líquido, que se foi juntando a pouco a pouco, até tomar a grandeza que hoje tem. Desta presa, a água é elevada por meio de bombas a vapor e distribuída por toda a aldeia por grossas manilhas de ferro que cortam o terreno em todas as direções. Mais acima e para nascente, outro lago há ainda, muito mais pequeno, e como está situado num ponto alto, a água sai naturalmente, ou em canos, que a conduzem para a mina, para as oficinas, estação e outros locais, ou em regatos que a levam para todos os sítios baixos. Na Achada, onde ficam os depósitos do minério, os moinhos que reduzem a pirite a pó e outras instalações indispensáveis num centro mineiro como este, há ainda outro lago, também de avantajadas proporções. Esse, porém, está n'este fim de verão ardente quase esgotado.
Apesar de haver por aqui tão grande abundância da água, não se suponha, porem, que os ingleses a fornecem de graça, à população da mina. Vendem-na a quem dela necessita, e só a dão gratuitamente aos empregados superiores, mandando-lha a casa em grandes pipas semelhantes às que na capital servem para regar as ruas. A povoação, aparte as casas, que estão cuidadosamente caladas, não prima pela sua limpeza, formando um contraste bem flagrante no que diz respeito à higiene a parte portuguesa com a que é habitada exclusivamente pelos ingleses. Já lhes disse nas cartas anteriores que a empresa formou aqui uma polícia sua, a quem paga e a quem incumbiu a manutenção da ordem. Constituem-na vinte e quatro guardas, que ganham quatro centos e oitenta réis por dia, e um chefe, que é ao mesmo tempo o regedor, cujo ordenado são trinta mil reis mensais, casa e água de graça e dois fardamentos por ano. Atualmente fazem eles quartos de sentinela por toda a região mineira armados com magnificas carabinas Mauser, das que foram apreendidas, por ocasião da guerra do Transvaal, à cavalaria boer.
Para tratar os operários que forem vítimas de desastre, há, a meia dúzia de passos da contramina um hospital, onde se encontram os aparelhos cirúrgicos indispensáveis para as diversas operações. Na farmácia dão-se remédios aos mineiros doentes e a empresa tem aqui um medico a quem paga á sua custa. Esse medico é o Sr. dr. António Maurício de Vargas, um clínico distintíssimo, que reside na mina há onze anos e que conta entre os habitantes de S. Domingos as maiores e mais merecidas simpatias.
A reportagem das minas, bem ou mal, está feita. Nas minhas cartas procurei dar a impressão do que é este estabelecimento gigantesco onde trabalham para cima de três mil homens, quase todos nados e criados em S. Domingos, e tive sempre o cuidado de ser tão exato quanto possível, sem omitir um pormenor interessante, sem ocultar um detalhe curioso que servisse para desvendar um pouco o mistério quase impenetrável em que até agora têm vivido as riquíssimas minas do S. Domingos.
Deixei propositadamente para o fim a greve, que não foi mais do que um movimento impulsivo e irrefletido desta grande legião de operários da sombra, que fartos de sofrer e de trabalhar em demasia, se lembraram de reclamar mais alguns vinténs que lhes suavizassem um pouco a vida miserável que levam. Surgiu então o conflito entre o proletariado e os patrões, conflito que rebentou inesperadamente, quando a empresa julgava que os seus subordinados estavam ainda e estariam sempre tão submissos como dantes. As causas da greve, continuemos a chamar-lhe assim, são diversas. Entre elas, porém, avultam duas: a escassez dos salários dos mineiros e o quase desprezo com que os capatazes trataram os homens que no ventre da mina colhem o cobre que mais tarde acarretará para as algibeiras dos concessionários ouro em torrentes, chegando por vezes a esbofeteá-los. A pouca segurança das escaleiras também concorreu para a revolta dos operários. Vejamos agora quanto ganham os mineiros. A mina existe há cerca de cinquenta anos, e quando ela principiou a laborar foram estabelecidos, por cada doze horas de trabalho, salários que orçavam entre 500 e 600 réis. Isto é, um homem passava um dia inteiro no interior da terra exercendo uma profissão violentíssima, a brocar constantemente a rocha, e depois, quando regressava ao ar livre, quando voltava á vida, apenas lhe davam o necessário para não morrer do fome. A existência, no entanto, foi-se tornando cada vez mais cara, o pão e os géneros de primeira necessidade não deixaram de aumentar de preço de ano para ano, e essa carestia, que cada vez se acentua mais, veio, como era de esperar, tornar ainda mais miserável a existência dos desgraçados mineiros, que ainda hoje ganham o mesmo que ganhavam noutros tempos. Entretanto, a mina cada vez produzia mais, a empresa ia enriquecendo de dia para dia, os lucros atingiam quantias fabulosas, que iam além de cinquenta por cento. O que seria justo que os srs. Mason e Barry fizessem? Em primeiro lugar, assistia-lhes o dever imprescindível de, por seu próprio alvedrio, melhorarem as condições económicas da multidão de operários que tinham sob as suas ordens e que eram os únicos produtores da sua opulência. E depois, conceder-lhes regalias já que eles tinham incontestável direito e deixarem, duma vez para sempre, de os tratar como escravos, como máquinas.
Não quis a empresa proceder assim. A sua avareza, a sua sede de ouro, triunfaram, e enquanto nos centros mineiros do estrangeiro se olhava a sério pela sorte dos obreiros da sombra, procurando-se melhorar-lhes a situação e dar-lhes mais garantias de vida, na mina de S. Domingos continuava tudo como há 50 anos, extraindo-se o cobre por processos primitivos, e tendo-se em nenhuma conta a existência dos trabalhadores.
Gente submissa, habituada a obedecer cegamente às ordens que recebia, o gentio de S. Domingos não se revoltava, mas um momento veio em que chegaram até a esta serra, perdida no baixo Alentejo, noticias do que se passava nas minas de Espanha, onde os operários ganhavam mais e trabalhavam menos, ao mesmo tempo que tinham leis a protegê-los contra as empresas, a assegurar-lhes os seus direitos, que ninguém podia desprezar. Foi então que a semente da revolta principiou por aqui a germinar, e para que se desentranhasse em frutos sazonados bastava apenas o pretexto azado. Esse pretexto apareceu por fim. Foi quando a empresa entendeu dever reduzir as horas de trabalho a uns, esquecendo outros. Era mais uma injustiça que se praticava, e contra ela protestavam, indignadas, dúzias de centenas de homens que ela atingia e feria implacavelmente. Foi então que os mineiros se juntaram á boca da contramina pedindo em altos brados a redução das horas de trabalho e o aumento dos salários, Colhidos de surpresa, os funcionários superiores da mina ficaram sem saber que fazer, e como a sua policia não era suficiente para dispersar a multidão compacta que não cessava de reclamar mais umas migalhas do muito ouro que os patrões encerravam nos cofres fortes, pediram auxilio á guarda fiscal que não tardou em comparecer, acabando por espingardear a enorme massa do povo. Aos tiros responderam os grevistas com pedradas, e, quando a noite já ia alta, tudo serenou, não voltando os operários ao trabalho no dia seguinte. Mas como podia manter-se uma greve de famintos? Os mineiros não têm aqui uma associação de classe nem possuem um cofre de resistência que lhes possa dar, quando o trabalho falte, os meios de que necessitarem para se manter. Não conhecem a previdência, e quem ganha o que eles ganham como pode pôr de lado alguns tostões que lhes valham nas ocasiões críticas? Essas organizações sociais, verdadeiramente maravilhosas, dos centros mineiros da França, da Inglaterra e da Bélgica, não as conhecem eles, assim como não conhecem as armas de que o proletariado se serve para fazer ceder os patrões, quando eles, como faz a empresa das minas de S. Domingos, os exploram.
Portanto, a greve tinha de acabar cedo. E acabou quando os mineiros se viram sem ter que comer, sem pão para os filhos.
Todavia, pelo facto de os mineiros não poderem sustentar-se em greve por muito tempo, nem por isso deixaram de continuar a reclamar da empresa menos horas de trabalho e mais ordenado. De Inglatérra veia o engenheiro Mr. Frederico Harvey, expressamente para parlamentar com os grevistas, e foi ele quem tomou conta das suas pretensões, a fim de as transmitir ao comité diretor das minas.
Os mineiros exigiam que lhes reduzissem a oito as horas de trabalho, que lhes aumentassem os salários a 700 reis, que quando doentes lhes dessem metade do que recebessem e ainda outras regalias de menor importância. Em negociações aturadas se tem passado alguns dias: mr. Harvey já partiu para o seu país com o relatório dos acontecimentos, e os operários aguardam a cada momento a resposta que aos seus pedidos darão os srs. Mason e Barry.
A luta entre os que reclamam e os que alguma coisa têm obrigação de conceder é tudo quanto pode haver de mais desigual. De um lado está uma empresa poderosíssima que tem à sua disposição, neste recanto do país perdido entre serras, mais de duzentos homens armados. Do outro estão os mineiros famintos, que não podem sustentar as suas pretensões. E a empresa tem sabido conduzir as coisas com tal astucia, tem de tal modo zelado os seus interesses, que há de dar aos desgraçados proletários apenas o que muito bem entender, continuando a aferrolhar avaramente todo o ouro que as minas produzem. A exploração do cobre continuará a ser feita como até agora, sem se atender á segurança dos mineiros; as escaleiras não serão modificadas de modo a evitarem-se os desastres que tão frequentemente ocorrem; na mina continuarão a encontrar a morte, esmagados pelos blocos de minério que inesperadamente se desagregam, dezenas do proletários; e enquanto isso sucede assim, os operários da treva não sairão da situação do escravos em que hoje vivem e serão sempre, nas mãos dos ingleses, coisa submissas de que eles procuram tirar a maior soma de interesse possível.
Durante o tempo que eu tenho estado em contacto com o proletariado de S. Domingos tenho tido ocasião de estudar um pouco detidamente os seus instintos, a sua maneira do ver e ainda a sua cultura intelectual. E das minhas observações, de tudo quanto vi e examinei, concluo apenas que esta gente está atrasadíssima, que é sofredora e submissa como nenhuma outra, que é incapaz de um mau ato e que não pode, ainda que queira, reagir contra as violências dos donos da mina, porque no dia em que deixar de trabalhar, morrerá de fome. E a empresa Mason & Barry sabe isso tão bem como eu.
Apenas o operariado retomou o trabalho, o sr. William Neville, diretor das minas, mandou proceder a um inquérito para apurar não só quem tenham sido os instigadores da greve, mas ainda para descobrir os operários que mais se haviam salientado nos motins que se deram á boca dos túneis.
Ora como o sr. Neville é aqui uma espécie de vice-rei que tudo manda e pode, foi imediatamente obedecido, e como era preciso arranjar cabecilhas do movimento, eles se arranjaram. Mas o inquérito merece que se fale dele.
De proceder às investigações indispensáveis foram encarregues os guardas da empresa, os quais depois de terem fingido que haviam inquirido e investigado conscienciosamente, apresentaram ao seu chefe uma lista de dezasseis indivíduos, que acusavam de terem arremessado pedras contra a guarda fiscal e contra a força militar que guardava o Malacate. Eles próprios, diziam, os tinham visto tomar parte ativa nos tumultos, reconhecendo-os entre a enorme multidão que berrava e barafustava pedindo que lhe matassem a fome, que lhe aténuassem a miséria em que por largos anos têm vivido.
Da posse dessa lista, bem certo de que eram os indivíduos que a sua polícia lhes apontava os causadores de tudo, o sr. Neville resolveu prendê-los e entregá-los às justiças deste país, como se fossem criminosos da pior espécie.
E se bem o pensou melhor o fez. servindo-lhe á maravilha, para realizar os seus desígnios, o sr. Pinto Leal, administrador do concelho de Mértola, que desde que a greve rebentou se instalou no palácio da direção da empresa, como em casa sua. E o Sr., administrador, que os ingleses sabem lisonjear e cercar de atenções, transformando-o num joguete nas suas mãos, sem procurar saber como se fizera o inquérito, sem se importar com a autenticidade das acusações feitas aos indigitados cabeças de motim, o sr. administrador que em tudo o que aqui tem ocorrido tem feito apenas o que os representantes dos srs. Mason e Barry desejam, consentiu imediatamente nas capturas, e ele mesmo dirigiu as diligencias policiais, acompanhando os guardas que as efetuaram e interrogando depois os presos na esquadra. E fosse alguém dizer-lhe, quando andava azafamado d'um lado para outro, que aquilo era uma arbitrariedade sem nome, que não podia ser sancionada pela autoridade superior do concelho. Prendia-o também, se os ingleses lhe ordenassem, é claro.
No calabouço foram encerrados dezasseis homens, dos quais seguiram mais tarde para a cadeia de Mértola oito desgraçados que não tiveram quem lhes valesse. E serão esses os que, tendo como testemunhas de acusação os policias da empresa, expiarão os amargos de boca que a greve trouxe aos proprietários da mina de S. Domingos. - A.
Mapa da distribuição e operações militares (CEMSD) - Ver maior
Pesquisa e transcrição realizada por João Nunes