As memórias de infância de Ralph Neville na Mina de São Domingos

As memórias de infância de Ralph Neville na Mina de São Domingos

 

Por Lesley Childs

(Transcrito a partir de cassetes gravadas pelo próprio no início dos anos 80)

Ralph e Thelma com a ama em São Domingos (Arquivo família Neville)


Texto adaptado para português por João Nunes (CEMSD)
e árvore genealógica realizada por José Zarcos Palma (CEMSD)

 

Nasci em março de 1901, o último dos filhos dos Neville. O meu pai era William Neville, nascido em Cogges, Oxfordshire, e a minha mãe era Alice Kate, nome de solteira Jeffery. Tiveram seis filhos nascidos entre 1882 e 1901.
O primogénito, Jeffery, não sobreviveu à infância, depois veio a minha irmã Eva (Alice Evelyn) nascida em 1883, a minha irmã Nita (Edith Nita) nascida em 1884, o meu irmão Wilfred nascido em 1891 e, finalmente, após um grande intervalo, a minha irmã Thelma (pronuncia-se Telma) nascida em 1900 e depois eu próprio.

 

Cannon Street ano 1900 aprox.


O meu pai tinha deixado os escritórios da empresa Mason & Barry em Cannon Street, Londres, em 1900, e foi para a mina. Depois regressou a Inglaterra durante algum tempo e voltou para a mina com a minha mãe, levando-me a mim e, creio, à minha irmã, saímos em 1902, em setembro, quando eu tinha um ano e meio. De facto, vi no livro de visitas do edifício a que chamavam Palácio, na mina, o registo da chegada da minha mãe por volta dessa altura.
Naquele tempo, vínhamos de barco a vapor, normalmente a linha do Royal Mail que fazia a ligação entre Southampton e a América do Sul. Os barcos A (os seus nomes começavam todos por A) partiam de Southampton e os barcos D (mais uma vez, os seus nomes começavam todos por D) partiam de Liverpool. Os barcos A demoravam 3 dias, parando geralmente em La Coruña e Vigo, por vezes no Porto, e os barcos D costumavam demorar 5 dias.

 

A mina em si situava-se numa zona muito árida do país e a comunidade era pequena. Havia cerca de 8 a 10 engenheiros britânicos, os chefes dos sectores, que geralmente tinham mulheres e famílias. Havia o homem encarregado das minas, o homem encarregado dos trabalhos a céu aberto e vários outros.

 

Lembro-me de vários nomes como o Sr. Rich, o Sr. Clinch, o Sr. McBride e o Sr. Brown, responsáveis pelos engenheiros, e havia uma casa de solteiros a alguma distância, onde os engenheiros solteiros ficavam alojados. Lembro-me do Dr. Vargas, que cuidava de nós, era casado e tinha uma das casas na zona dos "snobes", onde viviam os ingleses. Também o Padre Brito, que era o padre católico pago pela Companhia, cuja governanta era a sua irmã. Depois, claro, a própria aldeia com cerca de 5000 pessoas, uma igreja católica, um teatro e um clube social tudo construído pela empresa.

 

Mina em 1907 aprox. (Fonte CEMSD)


Havia um lago que tinha sido um riacho represado, um lago com cerca de 3 milhas de comprimento (aprox. 4,8 Km) que fornecia água para a mina e nos proporcionava algum lazer, pois tínhamos barcos à vela e a remos e alguns cavalos. Quando éramos crianças, levavam-nos muitas vezes a andar de cavalo.
Um homem chamado Isidro, com botões de latão no casaco da empresa, levava-nos a passear a cavalo no campo e no lago Francisco Manuel, outro com botões de latão e casaco da empresa, levava-nos a passear de barco.

 

Tapada Grande (Foto família Abecassis)


As comunicações com a mina eram feitas pelo caminho de ferro da mina, com cerca de 17 km de comprimento, até um pequeno porto no rio Guadiana, chamado Pomarão, de onde o minério era embarcado em barcos que subiam o rio Guadiana, vapores com cerca de 3000 a 3500 toneladas, e o minério era carregado nesses navios, muito frequentemente noruegueses.
Para nós, se quiséssemos ir, por exemplo, para Lisboa, descíamos a linha férrea da mina até ao Pomarão, depois apanhávamos um dos dois rebocadores da empresa, um chamava-se Rita e o outro Rhona, em homenagem às filhas de um dos directores, Sir James Francis Mason ou Edward Barry. Não me lembro qual, acho que o primeiro. Ou apanhávamos o pequeno barco a vapor chamado Eva, em homenagem à minha irmã mais velha, e por esse meio chegávamos a Vila Real de Santo António, à entrada do rio Guadiana. Depois, o comboio noturno para Lisboa, ou melhor, para o Barreiro, em frente a Lisboa, e o ferry para a outra margem.
A alternativa era apanhar a chamada carruagem com bancos, que era um veículo de mulas, duas mulas, e a carroçaria do veículo tinha dois bancos virados um para o outro, um de cada lado virado para dentro. Havia uma cobertura de lona que podia ser enrolada para cima ou para baixo, conforme necessário. E isso levava-nos os 17 km até Mértola, no rio Guadiana. Atravessávamos no ferry-boat e apanhávamos do outro lado um veículo semelhante, que tinha sido enviado de Beja, com uma mudança de mulas a meio do percurso. Partíamos nessa viatura, trocávamos de mulas e seguíamos para Beja e de Beja e apanhávamos o comboio das 2 horas, acho que era às 2 horas, que nos levava para o Barreiro, em frente a Lisboa.

 

Marcos dos Santos Domingos e Joaquim António Chora motorista da empresa (Foto família Nunes)


À chegada a Lisboa, havia sempre dois senhores de cartola, muito bem vestidos, o Sr. Corpas e o Sr. Danino, que eram os agentes da empresa em Lisboa.
Eles tomavam conta de nós e certificavam-se de que éramos levados para o navio em que íamos para Inglaterra, ou para um hotel, ou se íamos de férias para um comboio ou o que fosse necessário. Não íamos muito a Inglaterra, passávamos férias em vários pontos de Portugal. Uma ou duas vezes lembro-me de ir para a Praia da Rocha, no Algarve.

 

Naquele tempo tínhamos de alugar uma casa pequena, não havia hotéis. Ou então íamos para Sintra. Em Sintra o meu pai alugou uma pequena casa de campo que me lembro que se chamava Quintinha e lá ficámos um verão. O Rei D. Carlos I e a Rainha D. Amélia viviam no Palácio da Pena, por cima de Sintra, e costumavam descer a cavalo até à vila e depois subir. Bem, aconteceu que uma vez eles passaram e de repente a minha criada disse "Oh, o Rei e a Rainha" e eu parei, tirei o meu chapéu e fiz uma reverência, a Thelma fez uma vénia e o Rei e a Rainha pararam e foi a única vez na minha vida que fomos chamados de “pequenos anjos".

 

Rainha Dona Amélia em Sintra


A minha irmã Eva não estava muitas vezes na mina, parecia passar o seu tempo sobretudo em Inglaterra ou a visitar familiares da minha mãe na África do Sul. A Nita estava muitas vezes connosco e tratava-me como se fosse seu filho. O meu irmão Wilfred estava na escola em Inglaterra, embora viesse de vez em quando passar férias.

 

Por conseguinte, a minha irmã Thelma era a minha companheira constante. Mas, naquele tempo, o padrão de vida familiar era diferente do que é atualmente. Tomávamos o pequeno-almoço no quarto das crianças (berçário), que era também onde a minha irmã Nita nos dava aulas. Almoçávamos com a família. Jantávamos no berçário e, por isso, não tínhamos contacto com os nossos pais. Pouco ou nada. Ocasionalmente, num piquenique ou se houvesse uma festa para crianças no Natal. A véspera de Natal era a grande festa das crianças, quando nos juntávamos a todas as outras crianças inglesas e fazíamos a habitual árvore de Natal, cantávamos lengalengas e todo esse tipo de coisas.
Tive a infelicidade de contrair malária e febre tifoide ao mesmo tempo, quando tinha cerca de 4 anos de idade. E fui levado pelo rebocador da Companhia para Huelva, pelo menos penso que tenha sido assim. Não me lembro de outra forma.
E lá fui tratado por alguns médicos escoceses. Lembro-me que a minha mãe me levou do Pomarão para Vila Real no rebocador e lembro-me que me deram uma dose horrível de quinino líquido.

 

Rebocador Rhona (Fonte CEMSD)


Depois de ter recuperado um pouco, fui enviado para Inglaterra e fiquei com uma prima do meu pai, Jessie Swaddling. Eram pessoas de Oxford, mas viviam num sítio chamado Southcote, a poucas milhas, na periferia de Reading. Passei lá um ano. Chegou o dia em que fiz 8 anos, em 1909, e fui enviado para um colégio interno em Inglaterra. Estive lá um ano, depois voltei para a mina durante um ano e depois fui para a escola preparatória em Worthing.

 

Em 1914 voltei para Portugal e devia ir para Tunbridge (Escola). Mas a guerra rebentou e, como ia acabar no Natal, adiaram a minha ida para a escola. E isso foi sendo continuamente adiado e a guerra parecia não acabar. Então eventualmente, o meu pai conseguiu que um Sr. Bourquin, um preceptor suíço francófono, viesse para Portugal para nos ensinar. Acho que eles tinham medo de nos mandar para casa num navio por causa dos torpedos e esse tipo de coisas. Bem, M. Bourquin não falava inglês, por isso tivemos de aprender tudo em francês, o que foi muito bom para nós, pois aprendemos e praticámos bastante francês. Isso durou cerca de um ano e pouco, até que finalmente fui enviado para Inglaterra para ir para a escola em Tunbridge.

 

Antes de partir, a minha irmã Nita casou-se com Milner Robinson em 1915 na Igreja de S. Jorge em Lisboa. O Milner era da família Robinson que tinha propriedades e fábricas de cortiça no Alentejo. Nós, isto é, o meu pai e a minha mãe, a Thelma e a Nita, ficámos alojados no Hotel Avenida Palace. O meu irmão Wilfred estava à frente.

 

Hotel Avenida Palace em Lisboa


A Eva estava, não sei bem onde. Foi um grande casamento e lembro-me que houve dois convidados “inesperados” que vieram a pé, sim, a pé, desde a mina até Lisboa. Um era o Pedro Martins, que era uma pessoa com quem eu brincava, e o outro, se calhar, era o Francisco Manuel, o barqueiro. De qualquer modo, estas duas pessoas fizeram todo o caminho a pé e, claro, quando deram notícias, o meu pai arranjou-lhes alojamento e foram devidamente convidados para o casamento. O casamento não correu bem e Nita regressou a Inglaterra para ser voluntária como auxiliar de enfermagem de pessoal militar (VAD – Voluntary Aid Detachment). Milner morreu de gripe espanhola em outubro de 1918.

 

Passo agora a falar um pouco mais sobre a vida na mina. A nossa casa era composta por uma sala de jantar, uma sala de estar, uma longa passagem, tudo num só piso, depois um quarto de dormir, um corredor à esquerda que levava à casa de banho, estritamente do tipo "balde", mais três quartos de dormir, depois a sala do berçário que era também a sala de aulas, a cozinha, muito grande, depois a copa, depois as casas de banho externas, incluindo um forno de pão. Do lado esquerdo, no exterior, havia dois ou três quartos para as criadas, o jardineiro vivia sozinho.

 

William Neville, Alice Kate, Nita e Thelma em São Domingos (Arquivo família Neville)


Lembro-me que as criadas pareciam ter sempre problemas emocionais. Uma ou duas delas tentaram afogar-se no lago. Houve todo o tipo de escândalos terríveis sobre isso. Houve vítimas, uma ou duas pessoas que ficavam realmente desesperadas e iam até à barragem, atavam grandes pedras às pernas e saltavam.

 

Aos domingos, naquilo a que chamávamos a zona dos "snobes", no meio do círculo de casas onde viviam os diretores, havia os jardins e no centro, um coreto. Todos os domingos, a banda da mina tocava ali e as raparigas e os rapazes andavam à volta em direções opostas. Logo a seguir ficavam os campos de ténis, que eram apenas terra vermelha.

 

Campo de ténis e coreto no jardim dos ingleses (Fonte CEMSD)


A mina em si era como um pequeno reino. Não havia lá ninguém a mandar, exceto o meu pai. Ele tinha a sua própria força policial de cerca de 30 pessoas, tinha o seu próprio hospital, tinha lá tudo. Nessa altura não havia passaportes e, se quiséssemos passar a fronteira espanhola, tínhamos de avisar as autoridades espanholas e costumávamos ir caçar javalis. O Francisco Manuel, que também era polícia, foi destacado para acompanhar-me, para que eu não me magoasse se houvesse um javali ferido. Ambos tínhamos armas.

 

Na mina, mostraram-me uns buracos que iam pelo interior da encosta, no cimo da mina a céu aberto, e disseram-me que eram os buracos usados pelos romanos, por onde mandavam os seus escravos para extrair o mineral. O meu pai plantou uma enorme quantidade de eucaliptos perto da mina, porque havia sítios pantanosos e os eucaliptos secavam-nos, para evitar a proliferação de mosquitos. Na outra margem do lago, plantou um grande número de pinheiros.

 

Por baixo da barragem havia os lavadouros para as mulheres lavarem a roupa. Num local da linha férrea da mina, a caminho do Pomarão, num sítio, não me lembro do nome (Achada do Gamo), mas o material que era retirado da mina e que não era embarcado era levado para o exterior e despejado nas bermas por vagões e depois os homens saíam e espalhavam muita água com mangueiras por todas essas bermas e por baixo escorria água vermelha que significava que tinha absorvido o cobre. Esta era levada a alguma distância e conduzida através de canais sobre a sucata de ferro e o cobre era depositado. Mais tarde, o cobre era retirado e colocado num grande barracão, onde secava, depois era ensacado e exportado.

 

Tanques de cementação junto da Achada do Gamo (Foto de John Higgins)


O meu pai não era muito alto, tinha cerca de 1,68m, a minha mãe era mais alta. Era um homem muito bondoso e muito trabalhador. Aprendeu facilmente o português e fazia discursos nessa língua. Falava francês e espanhol e, quando se reformou, decidiu aprender árabe para manter o cérebro ativo.

 

A minha mãe tinha má visão e usava sempre óculos. Não era fácil conviver com ela, embora nunca tenha ouvido os meus pais a discutir. Havia uma piada de família que dizia que ela estava sempre a perder as chaves de casa, pois estava tudo fechado à chave. Não se interessava muito pela Thelma e por mim, depois de um intervalo tão grande sem filhos, razão pela qual a Nita tomava conta de nós. Mas era uma boa cozinheira e, quando havia grandes festas no Palácio, ela e talvez uma das minhas irmãs faziam muitas gelatinas, blancmanges e bolos em abundância, embora tivéssemos uma cozinheira portuguesa. A minha mãe nunca chegou a dominar a língua, mas ensinou a cozinheira e as criadas a fazer comida ao estilo inglês através da linguagem gestual, um pouco de português e imagino que também tenham aprendido algumas expressões inglesas. De alguma forma, foram-se desembaraçando.

 

Criada na casa dos Neville – Não identificada/sem data (Arquivo família Neville)


Quando havia festas no Palácio, a Thelma e eu, crianças pequenas, éramos usadas para polir o chão do salão de baile. Punham-nos em cobertores e puxavam-nos para cima e para baixo.

 

Palácio anos 20 Séc. XX (Fonte CEMSD)


Para além de andar a cavalo, velejar e remar no lago, também fiz muita pesca. Havia duas ilhas no lago, uma chamava-se "ilha do Ralph" porque eu construí lá uma cabana engraçada para caçar. Claro que eu não tinha licença, mas a mina era de alguma forma um pequeno reino e o meu pai contactou a Guarda Civil e eles disseram "sim, mas não digam nada", por isso eu costumava ir para lá disparar sobre pequenos pássaros.

 

Represa nº4 - Tapada Grande (Fonte CEMSD)


O caminho de ferro da mina tinha, como já disse, 17 km de comprimento. Entrávamos num carrinho com 4 lugares e as carruagens desciam a colina, paravam e um motor empurrava-nos colina acima, até que a gravidade nos levava para baixo, do outro lado, e assim fomos até ao Pomarão.

 

Pomarão em 1906 (Fonte CEMSD)


Ver maior

 

  • William Neville ficou em Portugal depois da sua reforma, mas não sei onde viveu. Morreu em Portugal em 1923 e está sepultado no cemitério britânico de Lisboa.
  • Ralph Neville entrou para o exército britânico e reformou-se com a patente de Brigadeiro. Morreu em 1987 e as suas cinzas estão na mesma campa que as do seu pai no cemitério britânico de Lisboa.
  • Ao lado, encontra-se a campa de Wilfred Neville com a sua mulher Beryl. Wilfred (conhecido por Bill) foi gaseado na I Guerra Mundial e foi aconselhado pelos médicos a viver num clima melhor do que o inglês. Regressou a Portugal, onde viveu o resto da sua vida, exceto durante um período da II Guerra Mundial, quando regressou a Inglaterra para um trabalho de escritório. Morreu em 1969.
  • Alice Kate Neville viveu em Portugal com o seu filho Wilfred após a morte do marido. A dada altura, regressou ao Reino Unido, possivelmente na altura do casamento de Wilfred. Morreu em 1945.
  • Nita Neville (casou pela segunda vez em 1923 e teve uma filha, Hilary Anita, a minha mãe, que nasceu em Portugal. Regressaram ao Reino Unido pouco tempo depois. Nita morreu em 1976.
  • Eva Neville casou em 1915. Ela e o marido passaram algum tempo na África do Sul, mas regressaram ao Reino Unido. Teve uma filha. Eva morreu em 1975.
  • Thelma Neville casou-se com um oficial do exército. Teve dois filhos. Perdeu o contacto com a família.

 

Texto original na língua inglesa escrito por Lesley Childs